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Por que cientistas suspeitam de vacina russa?

Vacina russa preocupa comunidade científica pela ausência de publicações sobre resultados das fases de testes ou técnicas de produção
14:20 | Ago. 12, 2020
Autor Catalina Leite
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Catalina Leite Repórter do OP+
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Tipo Notícia

A divulgação do presidente Vladimir Putin de que a vacina russa, nomeada Sputnik V, seria “a primeira” desenvolvida contra a Covid-19 poderia até ser uma boa notícia, se não estivesse rodeada de inconsistências. Isso porque o país não publicou nenhuma pesquisa apresentando os resultados dos testes, além de a vacina russa configurar como ainda na Fase 1 de ensaios clínicos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Ou seja, como não há publicações científicas sobre os testes, ninguém sabe como a vacina é feita ou como ela tem agido no corpo humano. Ainda, sequer passou por todas as três etapas necessárias para garantir eficácia e segurança da substância.

“Isso nos deixa completamente cegos. A gente mal sabe como é a construção da vacina. [O que sabemos é] só apenas por notas de imprensa ou, quando muito, entrevistas de algum representante do comitê científico do Instituto Gamaleya ou de autoridades russas. Isso não tem cara de evidência científica”, afirma a neurocientista Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.

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Transparência e segurança

 

O principal perigo da falta de transparência é que não há espaço para revisão de metodologias e resultados da vacina, nem para fiscalização. O método científico depende da constante revisão por pares (outros cientistas que não têm relação com a pesquisa) para que possíveis falhas ou até manipulações sejam identificadas.

“Dados que podem ter sido manipulados são facilmente detectados quando você os mostra para a comunidade científica. Isso que é o bonito da ciência, por isso ela funciona: porque temos diversas mentes olhando para aquele estudo”, explica o biólogo Luiz Almeida. Ele é diretor no Brasil do festival internacional de divulgação científica "Um Brinde à Ciência", e é também coordenador dos projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência (IQC).

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No entanto, diferente das outras vacinas, como a de Oxford, na Inglaterra, e a chinesa Sinovac, a Rússia não publicou nada sobre os resultados da Sputnik V. Tudo o que se sabe é que o país fez um estudo com 38 voluntários saudáveis para as Fases 1 e 2, no objetivo de testar a segurança, tolerabilidade e imunogenicidade da vacina. Essas informações estão publicadas na Clinical Trials, site mantido pelos Institutos Nacionais da Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos EUA.

Veja alguns posicionamentos de cientistas e divulgadores científicos

 

Consequências

 

Para Luiz, é possível vislumbrar quatro cenários para as consequências da falta de transparência da vacina russa.

O primeiro cenário é que a Sputnik V de fato protege contra o Sars-Cov-2. Nesse caso, para que outros países, incluindo o Brasil, aceitem a vacina, a Rússia precisará publicar os resultados dos testes. Para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, esses documentos são imprescindíveis para permitir que a vacina entre no País.

No segundo cenário, a Sputnik V não funciona e foi “uma propaganda mesmo, para mostrar como a Rússia está avançada cientificamente”, projeta Luiz. Ao mesmo tempo, ela também não faz mal. No entanto, ela dará uma falsa sensação de segurança às pessoas, que acreditarão estar imunizadas - e, consequentemente, pararão de cumprir medidas de segurança efetivas, como distanciamento social.

No terceiro, a vacina não funciona e provoca efeitos colaterais graves. Como a Rússia não mostrou os dados de segurança, existe a possibilidade de ela ser danosa à saúde humana. “Ela vai gerar um movimento anti-vacina ainda maior para as outras vacinas. É um perigo muito real”, alerta o biólogo.

O último cenário, ainda que Luiz o defina como “distópico e de ficção científica, mas também preocupante”, envolve um aspecto mais político da vacina. “Mesmo que eles tenham a vacina ou não, estejam vacinando ou não, eles podem vir e falar que vacinaram a população inteira, que não têm mais vírus, e aí começam a manipular informação”, cogita.

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Motivações da falta de transparência

 

“Por mais estranho que pareça, essa situação política toda faz com que a gente acredite que o vírus seja o nosso menor problema”, comenta o cientista. De fato, a comunidade científica especula possibilidade de motivações políticas por trás da não publicação de dados sobre a Sputnik V.

A pesquisadora Mellanie relembra uma publicação do jornal estadunidense New York Times, no qual analisa o cenário político de Putin na Rússia. Segundo o periódico, as últimas semanas registraram queda de popularidade do presidente, somada há muitas semanas em que os cientistas russos vem anunciando a vitória na “corrida pela vacina”.

“Essa notícia de que a vacina russa sairia em agosto não é recente, já ouvimos lá em julho, então eles já vêm anunciando e construindo essa expectativa há muito tempo”, diz Mellanie. De acordo com ela, as especulações surgem justamente pela ausência de informações concretas sobre os testes. Dessa forma, surge a necessidade de analisar o contexto sociopolítico da nação: “É importante que divulguem esses resultados tão logo possível. É a saúde da população em jogo”.

Tempo e etapas de produção de fármacos

 

Além da ausência de publicações, o próprio tempo de produção da Sputnik é suspeito. Conforme pesquisa publicada na revista científica Nature, o tempo padrão para produção de vacinas é de dez ou mais anos. O que os cientistas do mundo inteiro têm feito em menos de um ano de pandemia é, por si só, surpreendente; mas, por mais rápidos que eles sejam, ainda é preciso respeitar o tempo do corpo humano apresentar uma resposta imune.

De acordo com o pesquisador Luiz, “em seis meses é muito improvável que já tenham uma vacina tão avançada assim”. Dados da OMS, atualizados na segunda-feira, 10, indicam que 28 candidatas à vacina estão em estágio clínico. Ou seja, já começaram a ser testadas em humanos, após apresentarem resultados positivos em testes em laboratório e em animais.

Delas, apenas duas, Sinovac e de Oxford, estão autorizadas para uso limitado. Outras oito vacinas estão na Fase 3 de testes, 11 na Fase 2 e 19 na Fase 1. O documento indica a Sputnik V como na Fase 1 de testes. Ainda existem mais 139 candidatas em estudos pré-clínicos - em laboratório ou animais.

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“A Fase 3 é decisiva, ela bate o martelo quanto à eficácia e segurança e se realmente a resposta for imunogênica”, explica Mellanie. Pular a Fase 3 não é uma opção: afinal, 50% dos estudos falham nessa etapa em relação à eficácia. O dado é de pesquisa publicada no periódico Applied Clinical Trials. Outros 30% falham por serem inseguros, enquanto aproximadamente 20% têm custos comerciais (logístico, de transporte ou armazenamento) altos demais para viabilizar a vacina.

“O pesquisador vai precisar remodelar o experimento. Sabendo disso, sabendo que a gente tem esse ponto de afunilamento, como é que não se faz Fase 3 para pesquisa de uma nova vacina e já vai anunciando?” questiona a especialista. No entanto, não cumprir com sucesso a terceira etapa está longe de ser algo ruim. É esse processo de tentativa e erro que permite os pesquisadores desenvolveram vacinas e medicamentos mais refinados e seguros.

“Por que hoje temos campanhas em que vacinamos praticamente todo mundo e quase não temos reações? É porque elas são muito bem elaboradas. É o que desarma o movimento anti-vacina, porque é algo muito regulado, fiscalizado e é bastante seguro”, conclui a pesquisadora.

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