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Acervo da rua

17:00 | 21/01/2017
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No Porangabussu, lá pelos anos 80, foi fundado de araque a Academia da Língua Correta. Uma brincadeira de meninos e meninas para frescar com quem falava e escrevia “errado” o Português.

No fundo, um preconceito medonho com quem precisava inventar um jeito próprio para se comunicar para além da gramática “difícil” e das séries escolares apartadas por “fortes” e “fracos”.

Sim, a escola fazia (ainda faz) a diferença entre estudantes “inteligentes” e “atrasados”. E acabava incentivado achar engraçado rir da cara de quem falava “errado” e escrevia capenga.

Até um tempo, enquanto atravessei a adolescência, acreditava que quem sabia escrever e falar “direito” era quem tinha guardado um saco de palavras e regras “difíceis”... e as bodejava
para impressionar. Apenas ‘empabulação’ e palavrório oco.

Pois bem, a Academia da Língua Correta se reunia na melhor casa da rua e onde havia uma garagem com uma Rural, um fusca e um Maverick azul. Os pais eram advogados. Talvez, os únicos
formados da vizinhança.

Mas não tardou e os moleques da esquina, liderados por uma dessas meninas que amadurecem antes dos meninos, desafiaram os abestados da Academia criando o Museu da Língua da Rua.

O Museus não tinha sede fixa, funcionava num beco. Não tinha lousas, escrevia-se nos muros com castanhola ou carvão. Não tinha diretoria, era um magote de meninos nus da cintura pra cima e meninas um pouco mais vestidas.

Ora mais, ria-se da conversa da empregada doméstica – traficada ainda criança do Interior ou trazida de alguma favela próxima à casa da gente (pobre também tinha cunhã)... E que à noite, às vezes, a patroa permitia que ela frequentasse
o grupo escolar…

Ria-se também da lavadeira que, uma vez por semana, botava a roupa para ‘quarar’ no terreiro... Do vendedor de pão e leite, porta a porta, que pedia o “vrido” pra encher… Do canelau
que falava “outra” língua.

Virou um manifesto, gerou tabefes na rua, deu em confusão também na escola. Para se ter uma ideia, foi pedido que nas provas bimestrais se abolissem questões de “certo” e “errado” para o Português escrito. E na arguição fosse levado em conta a comunicação.

Não deu em nada. Minto. Deu em suspensão e em pisa. Português era o que estava na gramática e no dicionário. O resto era ignorância, jumentice.

Fomos obrigados a apagar todos os “muros-verbetes”. Restou um deles onde se lia: “Bicudo - pode ser da parte de quem tem ou faz bico; mas também os seios pontudos da moça. Ou o chute com toda força, a chibatada que embarca a bola, a bombaça com a cabeça do dedão ou de Kichute...”.

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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