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Rotas Performativas: "Talamo" e "Pela Força da Linha"

10:00 | Mar. 21, 2018
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ROTA I – TALAMO

Uma mulher negra caminha, em silêncio, com um vestido que costura fragmentos de tecidos sublimados por frases de violência contra as mulheres. Durante a caminhada pelas ruas do centro de Fortaleza esta mulher, que se parece com uma noiva, começa a arrancar pedaços do seu vestido e entregar aos transeuntes. Alguns aceitam, outros recusam, mas o que chama a atenção são os comentários:

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- Bem novinha e já pirada...

- Olha o que ela está fazendo, logo na frente da igreja mais antiga do Ceará!

- Será que ela está pagando promessa?

- Ela parece um fantasma!

- Me explica o que está acontecendo aqui?

- Ela está com os peitinhos de fora, olha lá, cabe na minha boca.

- Tire essa mulher louca de dentro da minha loja.

A recepção dos transeuntes é violenta, o corpo feminino é frágil, o que torna o percurso um risco. Ao mesmo tempo, o corpo é coragem e enfrentamento desta violência, do machismo, do preconceito e dá voz às denúncias que se tornaram apenas números para a sociedade.

Este corpo de noiva foi capaz de sublimar e se apropriar do seu próprio contexto, para criticá-lo e não para cobri-lo com o seu véu, afinal foi no espaço da cidade. Vale destacar que o espaço social habitável está em crise, por isso a necessidade de repensar o cotidiano urbano, principalmente para os corpos mais violentados. Tálamo é um corpo feminino negro, um corpo que carregou com ele muitos outros corpos de mulheres negras deste país escravocrata. Hoje foi muito difícil fazer este percurso junto com Kakaw Alves. Eu a observei e ouvi os comentários direcionados a ela, mas na verdade eu queria abraça-la e protege-la de Hoje, aprendi na pele que tenho privilégios, pois sou uma mulher branca e as mulheres negras sofrem mais violência do que as mulheres brancas.

Hoje, o meu corpo branco sofreu a violência direcionada ao corpo negro dela. Hoje, chorei, parei, caminhei e abracei.

Hoje me lembrei de Marielle, impossível não lembrar.

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ROTA II – PELA FORÇA DA LINHA

- Aonde será exatamente a performance? Porque se está escrito na programação do festival que será próximo ao terminal da Parangaba, como é que o público vai chegar nesse local, tão vasto e indefinido?

Essas questões permearam as conversas na mesa de jantar, em véspera de performance. Na ocasião, a preocupação estava centrada na formação de público de uma primeira edição de evento. No outro dia, antes de sair para acompanhar a tal performance, visto a camiseta do festival e logo sou repreendida. Afinal, uma logo-marca.

A performance começa antes de qualquer preparo ou anunciação, até mesmo antes da presença das próprias performers. Da Aldeota ao Pirambu, dentro do carro da produção do festival, meio perdidos entre esquinas, semáforos e uma paisagem litorânea, somos alertados pelas performers, por watzapp, a abaixar os vidros antes de adentrar o bairro. Ao chegar, as pichações riscadas no muro vizinho marcam a presença de facções: GDE e Comando Vermelho. Uma rápida buzinada e duas performers negras, homossexuais, carregando um tambor entram no carro. Olhei dentro dos olhos e me arrepiei ao ver meus próprios privilégios, de mulher branca, cisgênero, classe média e criada sob preceitos cristãos.

O local da performance ainda estava indefinido, salvo o bairro, Parangaba, outra região periférica de Fortaleza. A única exigência de caracterização do local é que deveria ser em uma encruzilhada. Ainda sem qualquer definição, estacionamos o carro e em uma volta ligeira no quarteirão, as performers já se posicionavam para iniciar o ritual, pois, a performance, como dito, já havia começado para mim.

As primeiras batidas de tambor já gritavam a diferença, em um país predominantemente cristão. Alguns diziam se tratar de macumba, outros, magia negra. Muitos curiosos sacavam seus celulares para rápidos registros e publicações em redes virtuais. Nesse movimento, atravessando de um lado a outro para acompanhar e também registrar a performance, senti-me, de fato, em uma encruzilhada.

Enquanto uma performer entoava cânticos umbandistas, a outra organizava ao seu lado uma espécie de altar com chapéus, vinho, velas, flores e outros utensílios, relacionandose com cada um como uma pomba-bailarina que gira e que gira e que gira. De fato, ritual e performance, aqui, era uma coisa só, assim como corpo e tambor. Pela força da linha tencionou uma fuga para além do fugitivo, serpenteando os preconceitos privados em lugares públicos. Se “o sangue de Jesus tem poder”, como muitos entoavam, arriscome a dizer que o sangue que corre nas veias dessas duas mulheres brasileiras jorra poder pelas vias da urbes.

Em alguns momentos carreguei lágrimas nos olhos. Ao atravessar aquela encruzilhada entre as ruas Sete de Setembro e Caio Prado, de um lado a outro, diferentes públicos se formavam e se posicionavam. Enquanto um mototaxista ameaçava bater nas performers, outro o alertava que o estado ainda era laico e outro ainda reivindicava a presença e posicionamento da polícia. Em outra via, um vendedor ambulante se aproximou devagar batendo palmas e engrossando o coro enquanto duas mulheres, uma delas com uma criança no colo, dançavam alegremente. Em um determinado momento, um homem caracterizado de Raul Seixas participou desse envolvimento ao dar as mãos à performerbailarina e girar e girar com ela.

A presença de público no festival, tão questionada na noite anterior, dissipava-se: este, não era aquele frequente nos festivais e eventos de arte e, sim, o transeunte desavisado que, em um susto, tinha que lidar com o inesperado acontecimento. A performance urbana abriu uma fissura de discussão naquela terça-feira no bairro, como um buraco na pista, e, talvez, nesse dia, muitas pessoas que comungam de um mesmo espaço rotineiramente, mas nem mesmo se percebem como parte dele, puderam se olhar e se inquietar juntos.

 

Pati Bertucci e Marcelle Louzada

Artistas e pesquisadoras

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