Monstros que brincam de ser Deus e o belo drama de Frankenstein

Monstros que brincam de ser Deus e o belo drama de Frankenstein

Longa-metragem de Guillermo del Toro, "Frankenstein" apresenta ao público adaptação dramática e poética do romance que marcou obras do terror

Quando se pensa em terror e criaturas monstruosas um dos principais personagens é a criatura de Frankenstein. E quando pensamos em diretor que trabalha com monstros em seus filmes é inevitável a ligação com Guillermo del Toro. A Netflix então juntou criador e criatura nesta que sempre foi a obra da vida do diretor mexicano.

A obra original de Mary Shelly mudou para sempre o gênero de ficção gótica e inspirou diversos movimentos e autores posteriormente. "Frankenstein ou o Prometeu Moderno" também teve esse impacto no cinema com a adaptação de 1931, que para muitos hoje é a imagem do monstro. Verde, parafusos na cabeça e pouco intelecto de uma criatura que só pensa em matar. Porém, Frankenstein é muito mais complexo do que isso.

E é justamente essa complexidade que del Toro quer trazer em sua adaptação cinematográfica recém lançada no streaming. Ele - que sempre tem criaturas em suas obras e contou como foram importantes em sua vida - vê algo de bonito nos personagens grotescos e assustadores. Assim como a obra original, o prometeu moderno de Guillermo não se resume apenas um monstro que pensa em matar, mas vai muito além.

Frankenstein, de Guillermo del Toro, reúne elenco de peso

Um cientista que mistura alquimia com invenções divinas em sua inconformidade com a morte brinca de ser Deus ao criar vida a partir da morte. Victor Frankenstein, vivido por Oscar Isaac, é o verdadeiro monstro, entregando assim de forma nada sútil ao telespectador. Seu passado tenta explicar um pouco seus posicionamentos e o porquê de atitudes que desenvolvem a trama. O filme repete a linguagem do livro de dividir em narrativas contadas pelo criador e depois pela criatura.

A obra da Netflix gasta um bom tempo no processo de pesquisa e tentativa de explicar como, a partir de restos mortais, Victor criou vida, algo pouco explorado no romance de Shelly. A virada se dá de fato com o momento em que ele dá de cara com seu maior pesadelo: a própria criação. O momento não tem tanto impacto como o filme de 1931, quando o cientista grita efusivamente "está vivo!". Mas a curiosidade chama atenção.

Não demora muito para que Frankenstein recuse a sua criação, que julgava não ter inteligência, sentimentos e emoções. Aqui, entramos em dois pontos altos do filme, a estética de reconstrução de época, charme e estilo típicos de del Toro, e a criatura interpretada por Jacob Elordi. O ator, com auxílio de um trabalho fantástico de maquiagem, brilha ao colocar toda sua fisicalidade e olhos em atuação de um ingênuo, aparentemente puro e por vezes assustador monstro.

Por mais que o elenco seja de peso, inclusive com o duas vezes ganhador do Oscar, Christoph Waltz, e a ótima Mia Goth, o filme é dividido em Oscar e Jacob. Os dois são a alma e coração do filme. Victor por mostrar não ter sentimentos e o monstro por ser emotivo e sentimental.

Veja o trailer de Frankenstein, de Guillermo del Toro

Frankenstein: referências e conflitos

Esqueça aquela imagem de uma criatura que mal sabe falar e corre atrás de vítimas apenas por gostar de matança. Aqui, o monstro de Frankenstein aprende a falar a partir de cultura, poemas e uma visão de mundo ideal. Desde a Bíblia Sagrada, referenciada durante todo o filme com a clássica representação de Deus e Adão, até uma bonita e perspicaz referência a um trecho de "Ozymandias", de Percy Shelly, marido da autora da obra original, são bases para que o monstro forme seu intelecto e aprenda a desenvolver emoções.

É bela tanto quanto trágica a jornada de acompanharmos as angústias da criatura. Sozinho em um mundo que não pediu para vir, ele tenta compreender o que acontece ao seu redor. Além disso, busca o seu espaço à medida que tenta respostas do seu criador. Faz pensarmos quais queixas e pedidos faríamos se estivéssemos cara a cara com Deus.

Se o público vai assistir "Frankenstein (2025)" em busca de um terror clássico que aposta em jumpscares (sustos inesperados), esta obra não é o seu lugar. Se quer um drama existencial e esteticamente aprimorado, sim. E se está afim de uma releitura moderna da obra de Shelly, provável que se frustre com os conceitos apegados do livro. Aí está o maior divisor de águas de talvez não querer interferir tanto ou de, nas pequenas alterações, já descontentar os maiores fãs do romance.

Guillermo del Toro tem muito amor ao livro e ao seu filme, isso é nítido. O cuidado em passar a mensagem também, talvez por isso seja expositivo em alguns momentos. O público já entendeu na premissa de que Victor Frankenstein é o monstro, não é preciso ser dito com todas as palavras mais de uma vez. A demonstração caricata do pai maldoso rigoroso, o que é diferente do livro, também já indicava como seria sua reação a criatura. Um pouco simplório, mas que se explica nesta adaptação.

Onde o diretor não soube calibrar foi na temática da busca de um amor tanto por parte de Victor como de seu prometeu moderno. Elizabeth, vivida por Mia Goth, cumpre o papel da beleza e enxergar poema em tudo e todos, mas não se justifica as voltas dadas pelo roteiro para ela. Ela ser a única a entender os monstros a faz especial, o olhar para a beleza dos animais e demais criaturas, mas poderia ser melhor aprofundada em um romance antes feito por del Toro na pegada de bela e a fera, como no ganhador do Oscar, "A Forma da Água (2018)".

Monstros que misturam o horror com o belo e poético é marca registrada da carreira de Guillermo. Assim foi em "O Labirinto do Fauno (2006)", mais uma pegada de ação com "Hellboy (2004)" e "Círculo de Fogo (2013)" e debate existencial sobre pertencimento e autodescobrimento de "Pinóquio (2022)".

Frankenstein: uma tragédia dramática shakeasperiana

Frankenstein da Netflix é uma tragédia shakeasperiana. Bela e dura. Bonita esteticamente, poética em referências, afinal temos um monstro recitando bonitas frases, expressando seus sentimentos de solidão, medo e angústia como um grande trovador. E é nisso que a obra se apoia. Os debates mais modernos sobre tecnologia, inteligência artificial, assuntos que del Toro gosta de discutir, estão presentes.

E o que tem de bonita tem de trágica e dramática. A todo momento os personagens estão sofrendo, buscando respostas que não vão conseguir e tentando remendar seus machucados corações se vendo sozinhos em um mundo hostil. Tanto por frustação pelo que criaram, quanto por terem sido abandonados pelos próprios criadores. Além de terem vivenciado a incompletude de não terem parceiras de sua semelhança para lidar com aflições e ajudar a completar o seu vazio.

Este longa-metragem não pretende reescrever ou substituir o conceito formado pelo público por dois séculos de Frankenstein, mas apresentar essa leitura mais íntima e poética para as novas gerações que talvez só se remetessem a um clássico do terror de uma criatura que gosta de matar por prazer.

A citação final de Lord Byron, amigo de Mary Shelly, reflete bem uma das mensagem que o diretor quer abordar e que talvez seja também o cerne do que a autora quis com a obra de mais de 200 anos atrás: "E assim o coração há de se partir, mas, partido, ainda viverá".

Assim vivemos, com nossas dores, angustias e aflições, em busca de respostas e tentando ser felizes. Se tivéssemos a oportunidade de conversar com o criador, garanto que teríamos mais queixas do que agradecimentos sobre o que fizemos, nos fizeram ou deixaram de fazer. No fim, somos todos humanos feitos de retalhos e imperfeitos. Aí está a beleza da vida e da humanidade.

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