Germaine Acogny: o gesto como herança de uma arquitetura temporal

Germaine Acogny: o gesto como herança de uma arquitetura temporal

"À un endroit du début" — "Em algum lugar no início", em português — é um solo de Germaine Acogny composto por fragmentos de sua própria vida. Leia análise de Rosa Primo
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Texto de Rosa Primo*

“À un endroit du début”, que esteve no palco do Theatro José de Alencar, no dia 29 de outubro último, como parte da programação da Bienal Internacional de Dança do Ceará, trouxe à cena uma das presenças mais decisivas da dança contemporânea mundial: Germaine Acogny. Aos 81 anos, a coreógrafa senegalesa carrega no corpo histórias e memórias, imagens e subjetividades, dando a ver a materialidade do tempo em sua corporeidade dançante.

Esse percurso articula-se em uma investigação cênica cuja narrativa teatral e projeções visuais engaja-se à dança, nos movendo a uma existência que atravessou fronteiras, violências e invenções – sobreposições temporais que se desdobram em memórias pessoais, legados familiares e processos históricos. No corpo de Germaine, códigos ancestrais sustentam suas raízes. Trata-se de uma biografia marcada por um pai administrador colonial francófono e uma avó sacerdotisa iorubá. Cada gesto tem em si esse espaço de confluências identitárias, revelando o peso e o valor de cada instante.

“À un endroit du début” — “Em algum lugar no início”, em português — é um solo de Germaine Acogny composto por fragmentos de sua própria vida, numa narrativa corporal que costura a infância na África colonial, os ritos herdados das mulheres de sua linhagem, os deslocamentos entre continentes e linguagens. Ou seja, no corpo da artista: um campo de negociação entre mundos. Os movimentos dão conta dessa arquitetura temporal, a se fazer narrativa não-linear cruzando o palco.

O espetáculo tem início com Germaine Acogny evocando os escritos de seu pai, Togoun Servais Acogny — funcionário colonial que registrou, em diários pessoais, o processo de sua ruptura cultural. Esses manuscritos, lidos e corporificados pela filha, tornam-se matéria coreográfica: vestígios de uma história familiar atravessada pela contradição entre assimilação e resistência.

A partir deles, a artista investiga os custos subjetivos da colonização e o modo como o corpo retém o que o discurso tenta apagar. Em seguida, Acogny convoca a presença de sua avó, Aloopho, sacerdotisa vodu, apontada pelos moradores da aldeia como espírito reencarnado na neta — “Iya Tundé! Iya Tundé!”, gritavam, “a mãe voltou!”. É nesse entrelaçamento de vozes — a paterna, marcada pela perda, e a ancestral, marcada pela permanência — que a cena se funda, como se a dança fosse o lugar onde o tempo se dobra e o que chamamos origem volta a pulsar no presente.

A cena é tecida por camadas: projeções de vídeo, sons distantes, manuscritos do pai, uma poltrona, um livro, uma almofada rasgada; elementos cênicos que servem como pontos de sustentação da memória, lugares onde o tempo se fixa por um instante antes de seguir. Desse modo, telas de vídeo criam múltiplas temporalidades. Germaine atravessa essas imagens. Podemos ver a textura do tempo em sua pele, nos inserindo numa dramaturgia em que o movimento nos ensina a dançar. Em Germaine, tudo dança. Suas mãos dançam, continuamente.

Em colaboração com o diretor Mikaël Serre, Acogny entrelaça sua história pessoal com elementos que evocam outras narrativas. Assim, retoma Medeia, a princesa da Cólquida que abandona sua terra natal por amor e é posteriormente rejeitada. Uma experiência que desloca e ecoa como rupturas afetivas, marcando a biografia de Germaine. Cada detalhe carrega uma dimensão política, inscrita nos modos de mover, de respirar, de permanecer – algo que nos chega minuciosamente: no gesto que resiste ao apagamento, na escuta que devolve sentido ao tempo, no silêncio que sustenta o ambiente, nas imagens que emergem e que nos tomam antes mesmo que possamos nomeá-las.

O espetáculo revela o preço subjetivo da colonização e a resistência das mulheres africanas diante da opressão patriarcal e racial. Ao afirmar que “o poder é transmitido de mulher para mulher”, Acogny desloca a força do discurso para o gesto. A dança nos dança — um saber que se move de corpo em corpo, de geração em geração.

Em um dos momentos mais intensos, Acogny rasga uma almofada e deixa que as penas se espalhem pelo palco. O gesto, simples e contundente, transforma o ar em movimento: o que era contido ganha leveza, como se a memória precisasse se desfazer para poder seguir. A trilha de Fabrice Bouillon LaForest faz respirar todo o ambiente. No ápice do espetáculo, depois de atravessar a fúria e o desamparo de sua Medeia, Acogny pronuncia: “Papai, eu te perdoo”. A frase ecoa com uma clareza devastadora — não apenas como reconciliação pessoal, mas como enfrentamento das heranças coloniais e afetivas que moldaram sua história.

“À un endroit du début” faz da dança um território de perguntas. Dialoga com as urgências da descolonização e com as lutas das mulheres, sem transformar nenhuma delas em tema. Acogny dança as contradições de quem herda e reinventa: como honrar o passado sem nele se enclausurar? Como ser guardiã e, ao mesmo tempo, transformar o que se guarda?

Em Fortaleza, no Theatro José de Alencar, o espetáculo encontrou um público atento, silencioso e emocionado. Acogny encerrou a noite entre flores e aplausos longos, sem pressa — como quem sabe que o gesto mais forte é o que permanece.

*Rosa Primo é bailarina, coreógrafa, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestre em Sociologia pela UFC, realizou estágio doutoral no Curso de Dança da Université Paris VIII (França). Lidera o grupo de pesquisa Dança, Infância e Autismo (DIA/CNPq). Autora do livro "A dança possível: as ligações do corpo numa cena". Iniciou seus estudos em Fortaleza e construiu trajetória artística entre Ceará e São Paulo, atuando como bailarina, atriz, crítica e gestora cultural. Desde 2014, desenvolve pesquisas cênicas em formato solo, com destaque para "Encanta o meu jardim", "Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", obras que articulam corpo, memória, questões sociais e poéticas contemporâneas.

**A análise foi publicada a partir de parceria entre o Vida&Arte e a Bienal Internacional de Dança do Ceará. Nos próximos dias, outros textos serão publicados.

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