Bienal de Dança reúne 20 mil pessoas e destaca luta anticolonial
Realizada em Campinas, Bienal Sesc de Dança mobiliza milhares de espectadores em edição que teve como um dos destaques a luta anticolonial
“Eu dependo do samba para ser feliz”. A frase dita por uma das passistas do espetáculo “Minas de Ouro”, sob forte calor das 11 horas em uma praça histórica de Campinas, revelou nuances importantes atreladas ao movimento. Além disso, reforçou sentimentos de identificação e pertencimento por meio da dança.
O trabalho foi somente um dos exemplos de como a linguagem artística é capaz de mudar vidas, ser ferramenta de transformação social e de denúncias. A obra foi apresentada na 14ª edição da Bienal Sesc de Dança, em Campinas. O evento foi realizado de 25 de setembro ao último domingo, 5.
Mais de 20 mil pessoas conferiram espetáculos, atividades formativas, performances e instalações, com representantes de 18 países e 10 estados brasileiros na programação - entre eles o Ceará, na figura do dramaturgo Altemar Monteiro no espetáculo “Quintal”, dividido com dois artistas de Minas Gerais e Bahia.
Bienal Sesc de Dança: quase 750 profissionais envolvidos diretamente
O festival completou dez anos de realização em Campinas. Foram 11 dias de programação e cerca de 80 atividades. A edição envolveu diretamente quase 750 profissionais, entre artistas, técnicos e produtores. O número é superior ao dobro do registrado em 2023, segundo a organização da Bienal.
Na sexta edição em Campinas, a Bienal Sesc de Dança decidiu valorizar investigações e pesquisas que atravessam a dança contemporânea. Movimentos como o Hip Hop e a cultura Ballroom foram alguns dos destaques, além de temáticas como a resistência colonial.
“Minas de Ouro”, idealizado pela coreógrafa Carmen luz, foi citado por Hideki Yoshimoto, gerente do Sesc Campinas, como um dos destaques da programação ao “propor encontros com a dança e a beleza da mulher negra, ao mesmo tempo em que repensa a ideia de monumento”. Esses encontros estiveram desde o início no desenvolvimento desta edição, segundo ele.
“A programação foi pensada como um exercício de diálogo com os muitos contextos que compõem a cidade, marcada por camadas de movimentos sociais, políticos, econômicos e culturais. Nesse cenário, a dança se apresenta como corpo vivo dessas histórias, que atravessam passado, presente e futuro”, analisa.
Bienal Sesc de Dança: população abraça o evento
Há dez anos, desde que chegou a Campinas, a Bienal tem promovido esses espaços de criação e debates. Conforme Yoshimoto, ao longo da década “revisitou passados, abriu caminhos e apontou novos rumos, sempre ocupando espaços públicos e equipamentos culturais da cidade”.
Assim, é possível dizer que a população conseguiu “abraçar” o evento? Em sua avaliação, sim: a Bienal consolidou relação sólida com Campinas e o público reconhece sua relevância, se envolvendo de forma cada vez mais ativa. Vale dizer, porém, que o trabalho não ocorre apenas durante o festival.
Como contextualiza o gerente do Sesc Campinas, a formação de plateia é construída de maneira contínua e ao longo do ano, a partir da proximidade com público e artistas e com programação mensal dedicada à dança.
O trabalho é fortalecido desde 2019 pelo Encontro Produção Imprensa de Dança (Epid), com artistas, produtores, críticos, fotógrafos, dançarinos, jornalistas e demais interessados na área. Outro detalhe desta edição foi o investimento em ações educativas para diferentes públicos, ocupando praças, espaços cênicos e instituições de ensino.
“O principal objetivo desta edição foi dar visibilidade às investigações e pesquisas que atravessam a dança contemporânea, valorizando a criação artística sem perder de vista o legado construído ao longo da trajetória da Bienal. A curadoria buscou provocar novas formas de apresentação e diálogo, compreendendo a dança como um campo múltiplo, que envolve espetáculos, experiências de aprendizagem e espaços de encontro”, explica Hideki Yoshimoto.
Bienal Sesc de Dança: discussões sobre colonização
Uma das curadoras da Bienal, Talita Rebizzi indica que uma das metas para este ano foi a ampliação de participantes de Campinas na programação do evento, como forma de se aproximar cada vez mais da cidade - não só de artistas, mas profissionais de design, vídeo, cenografia e outras áreas.
Quanto a temas, destaca que a equipe de curadoria buscou trazer “pesquisas e estéticas” que ainda não estavam na Bienal e, entre trabalhos que falaram sobre alimentação e vestimentas, houve um marco: “Percebemos que estava muito forte a discussão sobre a colonização, sobre como resistir a isso que parece que nunca acaba, como nos reinventamos nesse lugar da colonização”.
Um dos espetáculos que se relacionou com essa discussão foi o colombiano “Detrás del Sur: Danzas para Manuel” — ou “Por Trás do Sul: Danças para Manuel”, em português. Interpretado pela companhia Sankofa Danzafro, o número homenageia o antropólogo, médico e escritor Manuel Zapata Olivella e sua obra mais célebre, “Changó, el Gran Putas”.
Publicado em 1983, o romance recria a saga da diáspora africana no continente americano e é centrado na experiência de escravização, sobrevivência e luta pela liberdade desses povos. O trabalho costura dança e música como um ritual épico, seguindo a estrutura do livro. A narrativa destaca também o esforço em manter a conexão com o território africano.
Na travessia do Atlântico, os personagens são acompanhados por seus ancestrais, pelos mortos e por orixás. Ao O POVO, o diretor artístico e coreógrafo do espetáculo, Rafael Palacios, defende a importância de homenagear o escritor Manuel Zapata e de contar a história “que faz parte da Colômbia”.
“Manuel Zapata contou ao mundo inteiro a história dos afro-colombianos. Por isso, era muito importante para nós, como dançarinos, abordar essa escrita de forma corporal, de modo que nosso corpo complementasse a história de Olivella com muito respeito, mas também com a contemporaneidade dos corpos negros que dançam”, pontua.
Ele acrescenta: “Precisamos que as pessoas ouçam o que temos a dizer a partir da nossa posição, das nossas ideias, da nossa forma de nos aproximarmos dos outros, quebrando estereótipos e quebrando aquele capitalismo que torna os corpos negros erotizados, ignorando o verdadeiro conhecimento que o corpo negro tem quando dança. A espiritualidade negra é a coisa mais importante para nós. É a chance de mostrar ao mundo uma dança espiritual”.
*Repórter foi enviado para Campinas a convite do evento
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