Alucinação 50 anos: uma profecia de Belchior sobre o homem e a IA
Pesquisadora da obra de Belchior, Josely Teixeira analisa o álbum "Alucinação", que completa 50 anos de lançamento, a partir das visões contemporâneas do humano e da inteligência artificial
19:40 | Ago. 05, 2025
Em 2025, celebramos os 50 anos do LP "Alucinação", de Belchior, um marco incontornável da música popular brasileira. Embora lançado oficialmente em junho de 1976, sob produção de Marco Mazzola, sua gênese criativa remonta a meados de 1975, quando foi concebido como um “diário de uma geração”.
"Alucinação" foi aclamado por sua originalidade e pelas letras extensas e discursivas, frequentemente comparadas ao estilo de Bob Dylan. Sua sonoridade sólida atravessa o blues, o country, o baião e o rock. Apesar de algumas críticas à insistência de Belchior no “novo”, o disco foi um sucesso imediato e conquistou gerações ao retratar com ironia e amargura o ocaso do sonho hippie e os dilemas da vida urbana. É considerado revolucionário por condensar o sentimento de uma juventude interiorana na cidade grande, confrontada com a violência do Estado e a derrocada dos ideais de liberdade.
A filosofia de Belchior, de que “viver é mais importante que pensar sobre a vida” e de que “amar e mudar as coisas interessa mais”, captava a urgência de uma geração que buscava transformação por meio da arte, em contraste com a acomodação denunciada na canção “Como nossos pais”.
Na faixa-título “Alucinação”, o artista explicita sua tese: "Eu não estou interessado em nenhuma teoria/ Em nenhuma fantasia, nem no algo mais[...] A minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais".
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Para Belchior, a arte deveria ser uma forma de conhecimento do real, um enfrentamento direto à realidade, em oposição às obras voltadas à fantasia ou aos “romances astrais”. Sua predileção pelo “conteúdo real das coisas” era, paradoxalmente, seu delírio mais absoluto.
Essa inventividade ia muito além das letras. A capa do disco, uma foto solarizada de Belchior feita por Januário Garcia, já revelava sua ousadia estética com efeitos de cor e luz. Mas é na contracapa que se percebe uma camada mais profunda: um desenho do próprio cantor, mostrando seu rosto de perfil com componentes eletrônicos no lugar das terminações nervosas do cérebro, estendendo-se até a boca. A imagem remete diretamente à canção “Cérebro eletrônico” (1969), de Gilberto Gil, e ao interesse da época pela cibernética.
Essa iconografia permite uma analogia surpreendente com o pensamento do neurocientista Miguel Nicolelis, referência mundial no estudo do cérebro humano e interfaces cérebro-máquina. Apontado como um dos 20 maiores cientistas da atualidade e um dos 100 pensadores mais influentes do mundo, Nicolelis traça distinções fundamentais entre o "real" e o "artificial". Em suas pesquisas, afirma categoricamente: “a inteligência artificial não é nem inteligente nem artificial”.
Para Nicolelis, a inteligência é uma propriedade emergente da matéria viva, fruto de bilhões de anos de evolução, e não pode ser replicada por meios digitais. O cérebro humano, segundo ele, funciona com uma lógica analógica, não digital, e pensa com sua própria matéria orgânica. O neurocientista também desmonta o mito da suposta autonomia da inteligência artificial, lembrando que ela depende profundamente do trabalho humano em todas as etapas de sua criação e funcionamento. Nicolelis alerta ainda para os riscos do conforto proporcionado por sistemas automáticos, que tendem a terceirizar nossa capacidade de pensar e, assim, comprometer progressivamente nossas funções cognitivas.
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A crítica de Nicolelis ao “hype” da inteligência artificial e à sua promessa de substituir o humano ressoa com a desconfiança que Belchior já expressava, meio século antes, ao questionar o culto ao fantástico em detrimento da “experiência com coisas reais”. O desenho do “cérebro eletrônico” na contracapa de "Alucinação" pode, à luz dessa perspectiva, ser visto não como uma celebração da IA, mas como uma representação profética dos riscos de uma cognição eletrônica dissociada da essência orgânica da mente humana.
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Ao valorizar a palavra clara, a dicção direta, a verdade dita sem artifícios, Belchior parecia antecipar a urgência de um pensamento enraizado na realidade, não em simulações ou abstrações tecnológicas.
Cinquenta anos após seu lançamento, "Alucinação" permanece um marco não apenas musical e poético, mas também visionário, capaz de iluminar debates atuais sobre tecnologia e essência humana. Belchior, com seu canto ácido, crítico e filosófico, foi, de fato, um profeta da realidade, alertando para a importância de mantermos a experiência real e o pensamento orgânico em face de uma crescente "inteligência eletrônica". Em tempos de virtualização extrema da vida, seu álbum não foi somente um registro de uma geração, mas uma mensagem atemporal sobre a primazia do ser e da experiência concreta em um mundo cada vez mais mediado e digitalizado.
Josely Teixeira Carlos é professora, com doutorado sobre Belchior na USP-Sorbonne. Saiba mais