Coluna Vanessa Passos: Toda ficção é autobiográfica e toda autobiografia é ficcional

Muitos escritores escrevem a partir da raiva, de uma inquietação, de um sonho e tudo isso inegavelmente são elementos que atravessam a mão que escreve

Eu estive na Bienal Internacional do Ceará numa mesa sobre "(Auto) ficção e escritas de si" com a escritora Nádia Camuça.

Comecei falando esta frase do Roland Barthes que está no livro "A louca da casa", da Rosa Monteiro: "Toda ficção é autobiográfica e toda autobiografia é ficcional". Ela diz muito sobre a complexidade do tema.

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Sei que hoje existe uma busca por uma relação direta entre obra e vida do autor, o que podemos chamar de preferência pelo "baseado em fatos reais", e que talvez, de algum modo, essa relação pode atrapalhar a liberdade da imaginação, da fabulação durante o ato de escrever e da essência da própria ficção.

No entanto, não há como fugir: o texto literário é atravessado pela mão que escreve. Digo isso porque até mesmo o recorte temático e a escolha dos personagens já fala muito sobre o escritor.

Muitos escritores escrevem a partir da raiva, de uma inquietação, de um sonho e tudo isso inegavelmente são elementos que atravessam a mão que escreve, e até mesmo questões inconscientes, por isso também normalmente se torna difícil reconhecer o que é ficção e o que é autobiografia, devido a essa linha tênue que há entre uma e outra.

Na literatura, muitas vezes, sobretudo na ficção, os autores negam qualquer influência biográfica durante a escrita. Isso ocorre devido ao fato de que em geral os críticos questionam a qualidade literária de um livro quando ele parte das memórias ou tem uma relação autobiográfica com o autor. Mas vejo isso como um equívoco, porque, como afirma Paul Ricoeur, a memória é também uma ficção. Não é possível resgatar o fato, a lembrança, tal qual como foi.

A memória é escorregadia. Eu tenho memórias ambíguas, que não me permitem distinguir se aquilo de fato aconteceu ou foi inventado, se era um sonho. E memórias de fatos que eu tinha absoluta certeza de que tinham acontecido de um dado modo, mas cuja veracidade era confrontada por outra testemunha, que me dizia que não tinha ocorrido exatamente assim e começava a contar sua própria versão da história.

Por fim, finalizo este texto com as palavras de Stephen Koch no livro Oficina de Escritores:

"Todo autor percebe de algum modo a unidade que liga o fato à ficção. Essa unidade está bem perto do âmago secreto de muitos projetos. Na incubadora silenciosa da maioria das obras de não-ficção, há um romance não escrito; e uma história verdadeira assoma na sombra de quase todo romance ou conto.

As duas coisas pairam próximas; embarcar em uma é vislumbrar a outra, por causa da origem que têm em comum: a fusão da imaginação com o fato.

Basta entrar nesse caminho para tocar algo vivo, um elemento essencial da arte de contar histórias […]"

Leia Também | Confira a coluna anterior de Vanessa Passos: Por que deixá-las morrer?

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