A música ficou mais curta? O poder do streaming na indústria fonográfica

Artistas discutem como as plataformas digitais modificam os processos de produção e venda de músicas

A parceria entre Justin Bieber e The Kid Laroi na canção "Stay", de dois minutos e 21 segundos, configura no topo da Billboard Hot 100, o principal ranking de singles dos EUA. Já nas paradas musicais do Brasil, o piseiro romântico de João Gomes em "Meu Pedaço de Pecado" conquistou o primeiro lugar da plataforma de streaming Spotify com pouco menos de três minutos de duração.

Hits com propostas similares são encontrados em álbuns recentes de sucesso, como "Batidão Tropical" (2021) da cantora Pabllo Vittar ou o último lançamento do rapper norte-americano Vince Staples que, completo, não chega aos 30 minutos. A sensação é que o período entre as faixas está diminuindo e as playlists estão caindo na repetição, mas será proposital?

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"Eu acho que sim. As músicas estarem mais curtas é o reflexo do tempo, que as pessoas não têm hoje. Eu mesmo estou produzindo canções muito curtas, de dois minutos, dois minutos e vinte, para ver se esse consumo da internet melhora", conta o produtor Tadeu Patolla, responsável por sucessos de personalidades como Beto Lee e a banda Charlie Brown Jr. "As produções, os artistas e os compositores estão fazendo uma estratégia de streaming", explica.

Novas estratégias

Em uma realidade onde é possível acessar milhares de títulos por meio de plataformas como Deezer, Spotify, Apple Music e Tidal, alguns cantores se apropriam de recursos para conseguir obter bons números. Dentre as estratégias mencionadas por Tadeu, estão a diminuição do tempo de duração das faixas, assim como introduções menores e o posicionamento do refrão logo no início da canção para "chamar a atenção imediata” do ouvinte.

Segundo levantamento feito pela Mídia Research, o tempo médio das músicas no Top 100 da Billboard caiu em um minuto entre 2013 e 2018. "Isso reflete na maneira de trabalhar, de produzir e de compor, porque você vai ter que gerar mais reproduções. Você quer fazer arte, claro, mas também é o ganha pão de muita gente", acrescenta Tadeu. Há 40 anos na área, o produtor agora investe no meio independente e trabalha com cantores como Nathan Ribeiro, sem a necessidade do apego às demandas do mercado. "O rei do streaming é o funk, eu não produzo funk. Eu não sou a bola da vez para fazer o tipo de sucesso hoje. Eu já fui, na época do rock. Está aparecendo uma nova gama de produtores que são muito bons e respiram essas coisas. O independente me procura porque eu sou bem versátil, a gente acaba virando parceiro", justifica.

O encontro com o cenário alternativo da indústria acontece, também, em um período de enfraquecimento das gravadoras. "No meu ponto de vista, a gravadora é uma gerenciadora de conteúdo, trabalha mais para a distribuição do artista", destaca.

Este viés perde forças em um momento em que as personalidades ganham mais autonomia e podem, como menciona o músico, trabalhar em outras áreas e administrar a própria carreira. “Para a gente que é mais velho, parece que o lado artístico foi embora, mas eu vejo como uma evolução. O mundo é outro, tem que se reinventar", pontua.

Salada musical

Usuário da plataforma Amazon Music, o produtor Mimi Rocha conta que a inteligência artificial presente no sistema faz com que ele descubra novas composições. Além disso, aproveita da possibilidade de criar uma rádio com sugestões de diferentes gêneros. "Se eu quero ouvir a última sinfonia do Beethoven, ou o último lançamento do Daniel Groove, já está lá", comenta. Por outro lado, ele ressalta o comprometimento de parte da cadeia produtiva em relação aos direitos autorais.

Mimi Rocha produziu canções com Fagner e Belchior.
Mimi Rocha produziu canções com Fagner e Belchior. (Foto: Divulgação)

"Se eu gravei algo com o Fagner, hoje eu tenho os direitos conexos. Ele ganharia o direito, o compositor a sua parcela, depois o produtor e os músicos participantes. Tinha uns percentuais", relembra. Com a falta de informações acerca desses profissionais no streaming, o repasse de verba é prejudicado. "Quem acaba ganhando dinheiro são os grandes nomes mesmo. Um artista de nível nacional, mundial, tem um retorno que um artista iniciante não vai ter", alega.

Em relação ao conteúdo disponibilizado, Mimi analisa as paradas semanais com uma "qualidade duvidosa", principalmente pelo uso repetido de bases de outros artistas. "Em muitos estilos não é nem um músico que está tocando, é um produtor, um DJ. Solta um loop de bateria, o teclado de uma (música) do Marvin Gaye e faz uma salada musical, né?", complementa. Após trabalhar com nomes como Belchior, Dominguinhos e Ednardo, ele encontra na plataforma um bom campo para “curiosos” e gosta de escutar produções da Turquia e Inglaterra, por exemplo.

É possível ir contra o sistema?

Esta, entretanto, é apenas mais uma mudança no mercado radiofônico, como pontua a cantora e jornalista Mona Gadelha. Na retrospectiva dos meios, ela menciona os LPs, as fitas cassetes e os CDs até chegar ao streaming. "Os meios de produção se tornaram mais acessíveis, mas a divulgação continua tendo um custo alto. Antes era feita na imprensa, com as plataformas digitais virou uma amplitude. Mas, no fundo, o poder econômico dita as regras, porque é preciso também verba de promoção para investir nesses sites todos", exemplifica.

Enquanto artista, Mona visualiza alguns empecilhos no novo método de distribuição para os independentes. "Acho que não é bom para o artista, para o processo criativo, depender de like, de view. Existe um esforço para cuidar das redes sociais, promover conteúdo. O artista independente, no fundo, é sempre uma situação desafiadora, tem que ser enfrentada com muita organização", informa. Como consumidora, revela preferir consumir os trabalhos de maneira mais lenta, mas acha "sensacional" ter acesso a discografia completas de artistas em um único dispositivo e criar playlists.

Mona Gadelha destaca, ainda, que as fórmulas para emplacar músicas não são novidade e foram mudando  conforme as décadas. "O mais interessante do mundo do consumo é sempre a possibilidade de surpresa", comenta. "A indústria tem como objetivo faturar com as fórmulas, mas sempre tem artistas que podem desconstruir com transgressão, acho que aí estão os trabalhos mais interessantes", reflete.

Um dos exemplos de canções que quebraram as premeditadas estratégias e alcançaram o grande público foi "Faroeste Caboclo", da banda de rock Legião Urbana. A composição de quase 10 minutos foi um dos maiores sucessos do grupo de Renato Russo.

A introdução de quase um minuto de "Hotel California", da banda The Eagles, poderia ocasionar um baixo rendimento nos streamings. Mas a música, com mais de seis minutos de duração, alcançou o primeiro lugar nas paradas da Billboard em 1977 e é um dos maiores títulos do grupo.


Já os Beatles explodiram no mercado com a reformulação de métodos já existentes na indústria musical. Em "She Loves You", eles desenvolvem dois tipos de refrão, um no começo, e outro no decorrer da faixa. A fórmula foi repetida em canções como "Can't Buy Me Love" e "Cry Baby Cry".

 

Agora, ainda há exceções na sistemática das plataformas digitais. Nomes populares ousam no cenário da mídia convencional: Harry Styles, em seu último álbum, lançou as canções "She" e "Fine Line". Ambas contam com mais de 6 minutos de duração e mais de 150 milhões de streams apenas no Spotify. Já o single "Happier Than Ever", de Billie Eilish, alcança a 11ª posição da Billboard com pouco menos de cinco minutos. Com demandas cada vez mais estritas, quais artistas conseguirão êxito seguindo as próprias fórmulas?

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