Como o cancelamento de editais da Secult impacta a cultura no Ceará

Descontinuidade de chamadas públicas da Secretaria da Cultura afeta não somente pessoas proponentes dos editais cancelados, mas também todo o setor

O cenário que envolve o cancelamento de três editais da Secretaria da Cultura do Ceará após resolução do Tribunal de Contas do Estado é complexo em níveis distintos, mas uma certeza é de fácil assimilação: o fato traz insegurança ao setor e acentua, no âmbito das políticas estaduais, o contexto de dificuldades já vivido pela classe há pelo menos meia década.

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Como o Vida&Arte noticiou no último sábado, 10, o XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, o XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo e o Edital Cultura Infância 2020 foram cancelados por conta de um imbróglio jurídico da pasta com o TCE, que se arrastava desde 2017, acerca do entendimento de um artigo da Constituição Estadual.

O processo do tribunal que analisava as bases jurídicas de três editais lançados pela Secult — o XI Edital Carnaval do Ceará (2017), o Edital Ceará de Cinema e Vídeo (2016) e o XI Edital de Incentivo às Artes (2016) — acabou culminando no cancelamento das três chamadas de 2019 e 2020, que ainda estavam em processo e utilizavam a mesma base. A participação de pessoas físicas nos instrumentos, por exemplo, foi questionada pelo TCE.

De forma direta, a revogação das chamadas atingiu os 160 projetos habilitados do XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo e os quase 300 classificados do XII Edital Ceará de Incentivo às Artes e 36 classificados do Edital Cultura Infância 2020 - em resultado preliminar -, sem contar com as centenas de classificáveis e de trabalhadoras e trabalhadores que se envolveriam nos projetos que fossem aprovados. No total, os três editais somavam R$ 16.577.492,00 em recursos.

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Sem comunicação com o setor

De acordo com fontes ouvidas pelo V&A, a situação extraordinária não teria sido informada pela Secretaria de maneira direta às pessoas proponentes por nenhum meio de comunicação. A informação do cancelamento chegou a grande parte delas por meios e fontes informais.

“A Secult não mandou e-mail, não informou porque seria cancelado. Ainda bem que a gente tem uma rede de cultura que se apoia muito, com os fóruns, trabalhos coletivos”, divide a cantora Luiza Nobel, uma das classificadas preliminarmente no Edital de Incentivo às Artes.

A falta de aviso formal direto às pessoas proponentes, inclusive, abriu espaço para dúvidas sobre de que forma se dariam os impactos da situação de cancelamento. “Não ficou claro se seriam os editais que ainda iriam sair o resultado ou se seriam os editais passados”, conta a produtora Caroline Louise, que tinha projeto habilitado no Edital Ceará de Cinema e Vídeo.

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A oficialização da informação se deu no fim da tarde da quarta, 7, quando a pasta publicou em seu site uma nota sobre o cancelamento das chamadas. Nela, a secretaria cita o “relançamento” futuro dos editais “com fundamento em legislação atualizada”.

“É importante ressaltar que a Secult precisa dar total assistência. Não só esclarecer quais os passos para a classe trabalhadora, mas também informar a todas aquelas pessoas que tinham passado nos editais que foram cancelados quais as opções que temos agora”, defende um proponente de um projeto habilitado que prefere não se identificar.

Retomada interrompida

Além da falta de comunicação direta e compreensível, há o fato de que os três editais cancelados já vinham com atrasos e demoras nos processos. A situação do Edital Ceará de Cinema e Vídeo, por exemplo, é paradigmática sobre o contexto de descontinuidades.

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O lançamento da edição de 2019 da chamada marcava a retomada do instrumento, cuja edição anterior havia sido lançada, àquela altura, já há três anos. O novo edital foi anunciado na esteira de um ano exitoso para o cinema cearense, marcado por uma fala pública do governador Camilo Santana (PT) na abertura do 29º Cine Ceará na qual ele se comprometeu a dobrar os recursos destinados ao setor audiovisual no segundo mandato. No entanto, como o V&A registrou no aniversário de um ano do lançamento do edital, em outubro de 2020, o processo da chamada pública estava parado desde o começo daquele ano.

“O edital estava em processo - tinha saído a habilitação - e as pessoas estavam há dois anos esperando para, agora, descobrir que ele vai ser interrompido. Nas comunicações que a gente faz com a secretaria, ela estava dizendo que em agosto ia ser lançado o resultado”, afirma Caroline.

É como demarca o proponente que prefere não se identificar: “Isso reflete a grande lentidão do processo dos editais. Demoram anos para o resultado, para serem realizados os pagamentos. Tudo isso atrasa o processo de democratização ao acesso à cultura e aos recursos públicos”.

Nova base jurídica

Para relançar os editais, a Secult precisará criar uma nova base jurídica, construir os textos dos novos editais e retomar os processos de lançamento e inscrições do zero. Uma vez que processos burocráticos são morosos, como atesta o próprio do TCE, iniciado em 2017 e que só se encerrou agora, artistas se questionam sobre a situação do setor cultural neste período - e isso em um contexto em que não é somente a pandemia que ainda afeta a classe, mas também os desmontes empreendidos pelo Governo Federal.

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“A Lei Aldir Blanc foi um dos maiores exemplos da desburocratização do recurso público para as mãos de trabalhadores da cultura, porque foi um edital emergencial que era muito mais acessível. Logo após, vem o banho de água fria que é essa decisão do TCE”, relaciona o proponente que prefere não ser identificado.

“A gente já não tem perspectiva. A classe vai ser a que vai mais demorar para se readaptar, no ‘pós-pandemia’ será a última a voltar de fato às atividades. O sentimento é de desespero”, avalia ele. “(Editais) são um dos principais escoadores de recursos públicos para a economia da cultura, são consequência de vasta luta da classe trabalhadora da cultura. Ver o fim desse processo, e também toda a burocratização em cima da cultura, é muito triste. Aos olhos de quem trabalha com cultura, isso só projeta que os tempos vão ficar um pouco mais sombrios”, avança o proponente.

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“A gente já está num cenário terrível com Bolsonaro no poder, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) há dois anos sem lançar edital. A cultura vai morrer? As pessoas não vão ter mais como produzir? É desesperador”, reforça Caroline.

A principal demanda da classe é buscar formas de desanuviar o grave contexto dos cancelamentos. “Mesmo o edital tendo questões legais como essas, era importante que fosse resolvido de outra maneira”, lamenta Luiza.

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Quem irá pagar essa conta?

Em nota enviada ao Vida&Arte, o sociólogo e presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará Amaudson Ximenes classifica os cancelamentos como frutos de “trapalhadas” de gestores. O artista afirma que se informou com “advogados, gestores e pessoas que militam e circulam no meio” e que há "quase unanimidade" em afirmar que o erro teria partido do jurídico da Secult-CE.

Amaudson Ximenes, fundador da Associação Cultural Cearense do Rock, guitarrista e fundador da banda Obskure
Amaudson Ximenes, fundador da Associação Cultural Cearense do Rock, guitarrista e fundador da banda Obskure (Foto: Arquivo pessoal)

"Enquanto isso, a massa de trabalhadores da Cultura, contemplada de forma legal e legítima, terá que refazer as contas, os planos para continuar sobrevivendo no tortuoso, movediço e complexo setor”, atesta. “A quem nesse momento podemos recorrer? Quem irá pagar essa conta? Alguém tem que se responsabilizar. Os artistas, músicos, produtores culturais fizeram o que rezava os editais em questão, mas os gestores de plantão, com suas trapalhadas, estão nos devendo”, avança Amaudson.

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O proponente que prefere não se identificar reforça a importância da organização da classe cultural no geral como um passo importante neste sentido. “É preciso tentar organizar novamente os fóruns das linguagens, reunir, fazer movimentação e pressionar por agilidade para encaminhar a nova lei que regulamente os editais”, sugere.

“É muito importante que saiam cobranças, que a classe se movimente”, reforça Caroline. “Enquanto secretaria de cultura, a Secult deveria estar defendendo o setor, brigando contra isso. Se há um impedimento, podemos trabalhar para resolver? Ou vamos simplesmente aceitar e acatar a decisão e atrapalhar toda uma cadeia?”, pressiona a produtora.

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