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Sérgio Sant'Anna, um contista de olho no tempo

Morto no último domingo aos 78 anos, vítima da Covid-19, Sérgio Sant'Anna deixa obra que o coloca entre os maiores autores da literatura contemporânea brasileira

No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual de que a literatura brasileira já teve notícia. Sérgio Sant'Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria com um profundo interesse nas letras, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade. Essa visão influenciou mais de uma geração de escritores.

Acostumado a distinções e reconhecimentos críticos, Sant'Anna continuou criando até o fim da vida, nos seus textos ficcionais, uma ambientação sensual para reflexões profundas que encontra poucos paralelos na literatura brasileira contemporânea.

Profundamente interessada pelo mundo ao seu redor, bem como a histórias do passado, e situada numa geografia tipicamente brasileira, carioca, a obra de Sant'Anna se volta para os conflitos íntimos dos seus variados personagens, colocando-os em confronto com a sociedade, tornando-se assim universais. Incansável, o escritor sempre buscou novos caminhos, mantendo em sua obra a coerência de um universo particular.

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Sua tendência à experimentação formal é facilmente detectada no trânsito que sua obra mantinha com diversos gêneros, embora ele mesmo reconhecesse no conto o seu métier principal.

"Me dou melhor com formas mais breves", disse o escritor num encontro com leitores em Curitiba, há 10 anos. Mais recentemente, porém, ele demonstrava inquietação com a definição "conto", preferindo em seu lugar a palavra "narrativas".

Seus narradores, seguindo a coerência, têm plena consciência da própria condição de narrar, estabelecendo assim desde o primeiro plano narrativo uma metalinguagem que coloca em jogo sempre as representações da realidade, e não a realidade em si, atribuindo sofisticação à sua literatura.

Um dos exemplos dessa constatação é Um Crime Delicado (1997, vencedor do Jabuti de 98), romance em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como peça, trabalhado como crítica. O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos. Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant'Anna cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado, gerando um curto circuito de alta voltagem narrativa.

Torcedor dedicado do Fluminense, o escritor também foi um dos responsáveis por inserir o futebol no contexto da literatura brasileira, em diversos contos, como Páginas Sem Glória, do livro de mesmo nome em 2012.

Suas obras foram traduzidas para alemão, italiano, francês, espanhol e tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia "que todo mundo já ganhou"), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro.

Sant'Anna começou na literatura em 1967, realizando enfim o sonho de escrever. Em 1969 publicou seu primeiro livro de contos, Sobrevivente (nascido no contexto da ditadura militar, ferida histórica que seus livros nunca perderam de vista, sem, porém, nenhuma derivação moralizante), que ele mais tarde renegou. Ao longo das décadas, dezenas de títulos consolidaram sua obra no panteão da literatura brasileira, como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1983), A Tragédia Brasileira (1984), O Monstro (1994), Voo da Madrugada (2003), O Livro de Praga (2011) e Anjo Noturno (2017), seu último livro publicado até agora.

Sérgio Andrade Sant'Anna e Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1941, e foi na biblioteca da casa dos pais onde adquiriu o gosto pela leitura, driblando a severidade da mãe em bloquear o acesso a títulos supostamente não adequados à sua idade. Ele citava Monteiro Lobato como primeiro interesse. Quando tinha 12 anos, mudou-se para a família para a Inglaterra, onde aprendeu a ler em inglês, língua em que leu autores beat ainda na adolescência; Franz Kafka e Machado de Assis também sempre estavam no seu imaginário de escritor.

Além das influências literárias, Sant'Anna sempre colocou em sua obra elementos de artes plásticas e do teatro, presença que ele justificava como provocadora dos sentidos sem a tentação da imitação que os escritores provocavam. Quadros frequentemente se tornavam o ponto de partida de textos, seja pelo tema, seja pelo ambiente. Um de seus ídolos era Marcel Duchamp, e mais recentemente ele adorou a exposição do artista chinês Li Zhang Yang, no CCBB do Rio.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 2011, ele se indignava, bem humorado, de estar chegando aos 70. "Acho inacreditável. Acho um absurdo. Ninguém acha que vai chegar a uma idade dessas. Você sabe disso. Quando a gente tem 15 anos, não acha que vai chegar aos 30, acha que 30 é velho pra burro. Isso me chateia". (Guilherme Sobota/ Agência Estado)

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