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"Ser expressivamente racista virou 'ousadia de ser real'"

Professora do IFCE e coordenadora Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, conversou com o Vida&Arte sobre acusações de racismo no Big Brother Brasil 2019
00:00 | Abr. 15, 2019
Autor Bruna Forte
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Bruna Forte Repórter
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Tipo Notícia

A bacharel em Direito mineira Paula von Sperling Viana venceu o Big Brother Brasil 2019 com 61,9% dos votos do público na última sexta-feira, 12. Além do prêmio de R$ 1,5 milhão, a ex-miss Agropecuária de Lagoa Santa saiu da casa também como alvo de um inquérito aberto pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para investigar comentários racistas e intolerantes que proferiu ao longo da edição. Anna Érika Ferreira Lima, professora do IFCe e coordenadora Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, conversou com o Vida&Arte sobre o tema.

O POVO:  A vencedora da 19ª edição do Big Brother Brasil, Paula, proferiu comentários racistas ao longo do programa. O que sua vitória nos diz nesse contexto social e midiático?

Anna Érika: O Big Brother Brasil se caracteriza como um reality show que traz como proposta essa junção de pessoas em situações de confinamento para mostrar cenas reais, seus diálogos e suas opiniões em um período de intenso convívio. Toda edição percebe-se que determinadas pautas se sobressaem à outras... O que vemos nesses anos? Das discussões pessoais aos desentendimentos pela rotina por estarem em um mesmo espaço, mas também as discussões em de temas relevantes como violência, educação, saúde, desigualdades sociais, intolerância religiosa e racismo. No entanto, o que difere da necessidade de se pautar temas tão importantes e caros para sociedade é com eles são colocados no programa. Eles vêm à tona pelo próprio perfil dos selecionados. De ativistas à racistas; de pessoas que vivem realidades sociais de vulnerabilidade àqueles que nunca precisaram trabalhar a vida inteira. Essa profusão de realidades faz emergir nesse coletivo o que está nessa sociedade como legítimo quando os ditos perfis encontram-se em seus ambientes naturais. O olho que tudo vê, analogia a identidade visual do programa, só coloca dentro das casas, nas redes sociais e nas rodas de conversa o que há de real e isso causa estranhamento e indignação quando passamos a perceber como falas preconceituosa, racistas, homofóbicas, misóginas e classistas são naturalizadas. A ganhadora do Big Brother traz em si o registro indelével do que há estruturalmente na sociedade, aliado à imagem da padrão eurocentrado e cujos relatos, falas contra povos negros e religiões de matriz africana, fazem com que se perceba a visão descomprometida com o que faz e diz, não se importando nem com a intensidade do que se externaliza, porque seria "apenas a sua opinião", "não havendo racismo em suas posições", mas que analisando a subjetividade das suas tentativas de defesa a todas as acusações fundamentadas, ocorre sim uma "tentativa" de defesa ao usar discurso do exagero dos grupos verdadeiramente agredidos e do famoso "mimimi" por parte de quem realmente entende os significados do que era exposto pela laureada, apenas por seus grupos comuns, vencedora do reality. Ser expressivamente racista, ser seguidamente homofóbica e repetir discursos sistemáticos de opressão virou "ousadia de ser real", como eu li hoje pela manhã em uma matéria do Jornalista William de Lucca, sobre esta "vitória" no reality show.

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O POVO: Os participantes Gabi e Rodrigo, diversas vezes, apontaram atitudes preconceituosas recorrentes nessa edição do BBB. Qual a importância dessas discussões em um reality show?

Anna Érika: A importância tanto da Gabi como do Rodrigo foi essencial. Vejo também como eles sofreram dentro daquele espaço todo tipo de racismo e preconceitos, tanto por serem negros como LGBTs , mas o papel que eles protagonizaram foi de representação. Eles pautaram questões fundamentais para entendermos porquê o Brasil é o País mais racista do mundo. E sabe por que isso? Porque a segunda maior população negra do mundo está aqui e isso não é refletido na sociedade. O racismo é um dos principais problemas sociais enfrentados nos séculos XX e XXI, sem nenhuma dúvida. Os seus desdobramentos têm causando, diretamente, exclusão, desigualdade social e violência. Lembro-me a paciência que eles tiveram ao explicarem aos "brothers” sobre o preconceito que vivenciam por causa da cor da pele; ou tentando explicar que não existe racismo reverso; ou ainda trazendo à tona conceitos importantes como racismo estrutural, racismo institucional, explicando a importância do sistema de cotas, rebatendo a lógica da meritocracia; ou ainda colocando que "ruim é preconceito, cabelo, não". Eles dois proporcionaram que nesse programa fosse evidenciada uma pauta essencial para se avançar do combate ao racismo e também para que percebamos a "realidade" a qual estamos "submersos".

O POVO: Nesse contexto de tamanho racismo estrutural, muitas vezes essas denúncias são encaradas como "vitimismo" ou diminuídas em sua gravidade. Ainda assim, tais discussões nesta edição foram muito acentuadas. Estamos avançando nessa questão ou ainda é muito incipiente? O que ainda precisamos fazer no combate à discriminação?

Anna Érika: Do total de brasileiros, 8,2% se consideram pretos e essa cifra cresceu 14,9% no Brasil em quatro anos de acordo com a pesquisa do IBGE. O que temos que foi apontado pelo Instituto é que, entre 2012 e 2016, o número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou 14,9% no país, ao passo que os que se autodeclaram pardos diminuiu. Há um processo de autoreconhecimento que tem levado a mudanças nos resultados de pesquisas. Invariavelmente, a discussão de classe se funde ou por vezes se confunde com questão racial. É fato que o racismo no Brasil é estrutural e o reflexo disso está também quando identificamos que os piores salários e também as menores oportunidades são dadas aos negros. Dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostram que os negros recebem 40% a menos do que os não-negros. Se isso não for racismo, expliquem o que seria! No mercado de trabalho, somos os que mais enfrentam dificuldades na progressão da carreira e na igualdade salarial; somos mais vulneráveis ao assédio moral e, invariavelmente, ao racismo institucional. A população negra corresponde a 78,9% dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios (Atlas da Violência, 2017). Somos metade da população brasileira (54%), sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras. É bem verdade que, se compararmos a atual realidade com os nossos antepassados que enfrentaram o escravismo, estamos um pouco melhor. Mas hoje enfrentamos chacinas, feminicídios, entre outras mortes evitáveis e que tem atingido as nossas representações em espaços de poder como foi o assassinato de Marielle Franco. Quando decidimos sermos vozes contra todos esses crimes, vemos a impossibilidade de se lutar contra o racismo sem desagradar os racistas, invariavelmente. É um lugar de conforto para os racistas se manterem respaldados no mito da "democracia racial" que só impossibilita a a verdadeira democracia diante da discussão racial. Registro também a criminalização do racismo teve um papel e algum avanço para quilombolas, que hoje existem em alguns estados, incluindo o Pará e no Ceará, com a UNILAB, vagas para ingresso de quilombolas nas universidades públicas. Teve também o Estatuto da Igualdade Racial. De acordo com o Ministério Público, todos os tipos penais relativos à pratica de racismo, além de imprescritíveis, são inafiançáveis e puníveis com reclusão de acordo com a Constituição. É um alento também vermos os trabalhos de tantos Coletivos Negros no Brasil e em Fortaleza. Observar os caminho dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabis) do IFCE, além de NACE, Nuafro, INEgra, MNU, Ceará Crioulo, entre tantos outros grupos que tem colocado essa pauta tão cara para todos nós nos espaços da cidade de Fortaleza e em diversos municípios no Ceará. É preciso mais! Temos que formar mais redes e fortalecer as existentes; estarmos em locais de poder, de tomada de decisões de deliberações que visem o povo negro e políticas públicas que atendam esses grupos.

O POVO: Nas redes sociais, os apoiadores da Paula rebateram as críticas sobre a atitude da participante alegando edição tendenciosa. Por outro lado, apoiadores de Gabi e Rodrigo também falam do papel da edição na saída dos participantes negros e numa suposta camuflagem do preconceito. Qual é a responsabilidade midiática na construção desse debate?

Anna Érika: Primeiro de tudo, pautar a questão racial. Promover visibilidade ao povo negro e desnaturalizar o racismo, a intolerância racial e o ódio fazendo com quem acha que está tudo democraticamente colocado em seus devidos lugares entenda que, quando se é negro, a história é bem diferente. É incômodo sair do lugar de conforto e ser contraposto ao que há de mais real em si. As suas verdades e dos seus grupos que acham que liberdade de expressão é chancela de agressão, crime e violência. Fazer as pessoas saírem dos seus locais de "meritocracia" incomoda. Mas, se incomoda, é porque a pauta está chegando em quem deve chegar. A responsabilidade midiática é essencial nessa construção, mas é difícil não questionar até que ponto é ideal manter uma situação específica como a colocada no programa. Falo da recorrência de declarações, depoimentos, deboches, inferiorização, objetificação contra o povo negro e suas crenças, as quais eram justificadas pela "liberdade de expressão". Até que ponto existe permitir um tema ser discutido e deixar transcorrer uma avalanche de falas racistas, agressivas e de máximas defendidas com tanta força por uma imagem (Paula) que fica vitoriosa, quando na verdade o que venceu foi o fosso que a nossa sociedade apresenta.

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