"Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro".

"Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro".

religião de matriz africana
Autor Francisco Victor
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Tipo Notícia

Era agosto de 2020 quando lancei o álbum Lorena Nunes ao Vivo com Banda Quente, que trazia uma versão de Sujeito de Sorte, música de Belchior que eu já cantava nos shows muito antes de gravá-la. Sempre que canto — e canto até hoje — essa canção me faz sentido em cada poro. Ela me conecta ao tanto de sangue e lágrimas derramados pelo caminho e à força resiliente que me faz bradar, a plenos pulmões, que me sinto sã, salva e forte. No mínimo, inteira — ainda que oscilando entre força e sanidade.

Em dezembro passado, voltei a interpretá-la, desta vez na abertura oficial do MIC BR, no espetáculo coletivo Siriará. Lá, eu de novo, sentindo tudo de novo. E tenho comigo pensado: "Será que eu num vou parar de sangrar e chorar tanto? Será que todo ano vou morrer de novo?".

Tenho morrido bastante nos últimos anos. Uma dessas mortes — sem dúvida a mais transformadora — foi em 2022, quando renasci para o Orixá, Iemanjá. Renascer para o santo me deu uma consciência tátil de que sou, de fato, filha da natureza. E mergulhei. Ao aprofundar nessa perspectiva de ser natureza, aprendi que a única coisa que não muda na vida é o estado constante de mudança. Vida é movimento. Todos os dias, sem exceção, alvorecemos, entardecemos e anoitecemos — até raiarmos novamente. Esse movimento não exige esforço. Como na respiração, a vida se impõe autônoma, mesmo quando estamos desatentos. Ela vem e vai soberana. Na inspiração, na expiração, nos dias, nas marés, nas estações…

A vida nos ensina que tudo é cíclico. Ser natureza é também me reconectar com tudo que em mim, diariamente, nasce, cresce e finda. Então talvez eu possa me responder que sim: vou morrer este ano e no próximo e no outro também, todo santo dia. Oxalá que sim! Sangrar e chorar fazem parte, como no parto. Também são expressões naturais de estar viva. E que bom que estou! Que bom que estamos!

Para mim, viver sob a perspectiva iorubá é, também, aprender a ouvir os aspectos divinos da natureza contidos em cada Orixá, que também são em mim; e ter minha família de santo é ter uma comunidade para ser espelho e escola de como posso, cada vez mais, aprender a viver em harmonia com os ciclos constantes da vida, dentro e fora de mim.

"Deus é brasileiro e anda do meu lado". No meu caso, não apenas anda: habita. Meus deuses moram em mim. Essa consciência me convoca a andar no mundo com a reverência e respeito que o divino merece. Cada passo é sagrado. E o caminho é agora. Como percebo, não há hierarquias de meses ou datas específicas. Respeito quem segue o calendário gregoriano. Mas prefiro seguir o tempo de Oxalá. Aprender com o igbin, o caramujo, a caminhar com o corpo inteiro presente. Que a vida é mesmo um presente, e nele se revelam os próximos passos.

"Presentemente posso me considerar um sujeito de sorte!"

Que em 2026 possamos caminhar nutridos com a certeza que cada dia é uma benção, honrando todos os inícios, meios e fins, e curtindo a viagem!

Asé


Lorena Nunes é cantora, compositora, yawô do Ilê Asé Omo Tifé e baila entre os fazeres da arte, da produção e do business. Uma mulher-mar-multidão, onde tudo canta e com muito axé.

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