O que aconteceu com os militares que foram contra o golpe de 1964

Mais de 6 mil integrantes das forças armadas foram perseguidos no regime militar brasileiro

Em nada há unanimidade. Toda ocasião histórica é formada por contradições e exceções. Da mesma forma foi no golpe de 1964, executado por militares, mas estopim para perseguição, afastamento e expulsão de diversos membros do Exército, Aeronáutica e Marinha, incluindo cearenses. 

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Segundo levantamento da Comissão Nacional da Verdade, realizado em 2014, os anos de 1964 a 1988 resultaram na punição de 6.591 militares das mais diversas patentes no Brasil todo. Dentre todas as categorias registradas, essa foi a com maior número proporcional de violações de direitos ao longo da ditadura.

Apesar da ampla quantidade, estima-se um percentual ainda maior de perseguidos. A cada nova pesquisa o número tende a aumentar, além dos processos que seguem em curso.

Como forma de punição, foram registrados: expulsão ou reforma; aposentadoria ou reserva compulsória; processos, prisões e tortura; além de registro de mortes. “Quando inocentados, não eram reintegrados às suas corporações; se reintegrados, sofreram discriminação no prosseguimento de suas carreiras”, diz o documento da CNV.

O grupo militar era formado por diferentes vertentes ideológicas: desde o legalismo, o nacionalismo até o socialismo e o comunismo. O que os uniam eram posicionamentos contrários às ações e ao próprio regime ditatorial, além da discordância sobre a deposição de João Goulart (PTB), último presidente antes do golpe.

Segundo o pesquisador David Oliveira, os estudos levam a crer que a maioria era legalista, ou seja, defensores da ordem democrática. E, mesmo se mais alinhados a esquerda, o especialista defende que as perseguições eram desproporcionais e injustificáveis.

“É importante contextualizar o período e a resposta desproporcional do golpe. Não havia um perigo de ‘revolução’ que justificasse as medidas golpistas” afirma o professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal (UFC).

A alta perseguição aos militares, em específico, estaria, então, ligada ao fato de que esses seriam os mais próximos dos atores que tomaram o poder político. “Alguns anistiados apontam para uma perseguição interna, afastando desafetos etc. Mas precisaria de um estudo específico para confirmarmos”, diz David.

Perseguição no Ceará, assim como no restante do Brasil

Um dos casos de perseguição ocorreu com Mario Teles, ex-sargento, hoje aposentado. Cearense, ele trabalhava no Parque da Aeronáutica em Recife, exercendo a função de vice-presidente de uma chapa do Clube dos Sargentos da Aeronáutica.

Após o presidente da chapa ter sido expulso sem motivos, Mário assumiu o Clube e passou a atuar em pautas voltadas para sua patente. Dentre elas, conseguiu aprovar uma que equiparava o curso de aeronáutica ao nível técnico de ensino, o que dava maiores “condições intelectuais” aos militares, segundo suas próprias palavras.

A conquista se deu com o apoio do Ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, do então presidente Jango. Como forma de agradecimento, Mário foi ao Rio de Janeiro convidá-lo para uma homenagem. Assim que pisou na Cidade Maravilhosa, o golpe foi culminado.

Nesse período, ficou agregado em uma Unidade militar por um período e, quando voltou ao Recife, diz recebeu tratamento de “criminoso”. “Parecia que eu tinha pegado lepra, ou coisa do tipo, todos fugindo de mim. Me senti até mal”, afirma.

Pouco depois foi “convidado", para voltar ao Rio, responder um processo. Foi quando foi detido por 7 meses. “Eles queriam ver minhas ‘influências politicas’. Fiquei esse tempo todo. Quando saí, fui expulso da Aeronáutica.”

A saída forçada do militarismo acarreta diversas consequências. Os expulsos da aeronáutica não podiam exercer funções em empresas aéreas, o que forçou diversos perseguidos a começarem a vida do zero. Mário chegou a vender livros, frutas, desenhos e, com grandes dificuldades, conseguiu finalizar uma graduação em Engenharia.

A anistia só veio 1979, com um convite para retorno ao militarismo, que foi negado prontamente. “Jamais. Não fui mais, não. Fui absolvido em todos os inquéritos e hoje recebo uma boa aposentadoria, viu?”, diz o ex-sargento.

Não se sabe ao certo quantos militares foram perseguidos no Ceará, no período da ditadura. O relatório da CNV não levanta os números por estados. Um levantamento feito, em 2013, pelo pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Flávio da Conceição, identificou 40 militares cearenses dentre as listas de anistiados. O número deve ser, no entanto, consideravelmente maior.

Em termos gerais, o regime militar brasileiro provocou 434 mortes e desaparecimentos. Em 2024 completam-se 60 anos do golpe, que durou 21 anos.

Sobre a Comissão da Verdade

Criada em 2012, Comissão Nacional da Verdade visa apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Apesar de levantar essas violações, o grupo não possui poder judicial, tendo em vista a Lei da Anistia de 1979. O objetivo é trazer esclarecimento às famílias, aos envolvimentos, além da contribuição histórica.

Segundo David Oliveira, a Comissão de Anistia sofreu “problemas graves” nos Governos dos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). Uma recuperação estaria em curso atualmente.

“Há hoje uma excelência qualitativa de pessoas na Comissão Federal e Estadual, que buscam reparar e pedir desculpas aos anistiados pelos graves crimes que o Estado brasileiro cometeu durante a ditadura militar ao matar, torturar, sequestrar, perseguir, fazer desaparecimentos forçados”, afirmou o pesquisador.

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