Migrantes relatam xenofobia e preconceito racial no processo de adaptação no Ceará

Ceará conta um Programa Estadual de Atenção ao Migrante e espaços de integração, como a Casa e a Pastoral do Migrante

Migrantes e refugiados de variados continentes chegam ao Ceará por diversas motivações. No entanto, todos têm uma narrativa em comum: os relatos de preconceito racial e xenofobia sofridos cotidianamente no estado.

O POVO ouviu, na manhã desta quarta-feira, 13, quatro pessoas que passaram pelo processo de vinda ao Ceará. Os repatriados vieram dos seguintes países: Guiné-Bissau e Cabo Verde, na África; Venezuela, na América do Sul; e Síria, no Oriente Médio. Destes, dois são refugiados, fugidos de sua pátria (Venezuela e Síria) e dois migraram para estudar no Brasil.

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Segundo a titular da Secretaria dos Direitos Humanos do Estado (Sedih), Socorro França, o procedimento da chegada é, em suma, igual a todos: são recebidos pela Polícia Federal, já com a presença de membros da Sedih e são orientados na emissão de documentos, inserção no sistema de saúde e de educação, no caso das crianças.

Dos quatro entrevistados, três alegaram facilidade no processo de regularização de documentos. Rosalina Semedo, vinda de Cabo Verde, e Umaro Seide, de Guiné-Bissau, tiveram seus processos “facilitados” por meio das instituições de ensino nas quais estudaram no Brasil.

Já a venezuelana Roberta Mervil, que deixou o país em 2019, junto das três filhas e da irmã, disse que ao menos na parte dos documentos, realizou a regularização de forma “fácil e rápida” pela Polícia Federal. Ela passou dois anos como refugiada, entrando no país pelo estado de Roraima, até que pediu para ser transferida. Via sorteio, foi realocada para o Crato, na região Cariri do Ceará, onde vive até hoje.

O relato de dificuldade nos documentos veio de Aminah Naham, cearense que voltou para o Brasil devido ao terremoto que atingiu a Turquia em 2023, onde prestava serviços comunitários. Antes disso, ela morava na Síria, sendo casada com o sírio Fahd Al Awaj. Ambos saíram do país devido à guerra e vivem em Missão Velha, na região do Cariri.

Até hoje, um ano depois, os dois não conseguiram emitir a certidão de casamento civil no Brasil e seguem sem perspectiva de emprego, com dificuldades de conseguirem provisões de alimentos. “Meu marido está com um quadro de depressão. Na cultura árabe é um peso muito grande: o homem não conseguir prover para a família. Fizemos currículos e apresentamos a empresas que têm árabes, mas há uma limitação de idade: só aceitam até os 44 anos e meu marido tem 52”, explica.

Sobre o registro, ela alega que são solicitados documentos prévios de casamento, que não podem ser pedidos por eles na embaixada, devido ao risco que isso pode acarretar à família de Awaj, na Síria. Aminah ainda diz que considera a assistência do Governo “sem empenho” e salienta que toda a situação é agravada com o preconceito e a xenofobia que sofre.

Relatos de racismo e xenofobia permeiam as experiências de migrantes no Ceará

Esse ponto foi o principal relato dos entrevistados. Todos alegaram terem ouvido ofensas, como Aminah, ou outros tipos de racismo e xenofobia, como o cerceamento em locais públicos e abordagens violentas da Polícia. O apoio e as dicas, muitas vezes, vêm de outros migrantes, que passaram por experiências parecidas.

“Meu primo veio um ano antes e ele me dava algumas dicas, claro que para mulher é outra coisa, mas ele comentava sobre as blitz de policiais. Só passei por isso durante meu mestrado em São Paulo, quando me deparei com uma situação desse tipo de abordagem”, relata Ronalisa Semedo, 48 anos.

Vinda de Cabo Verde, ela inicialmente se instalou no Rio de Janeiro e, após, se mudou para São Paulo para prestar mestrado. Só veio ao Ceará quando passou em um concurso para lecionar na Universidade Brasileira alinhada à integração com os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), voltada para a integração do Brasil e, especialmente, dos países africanos falantes do português.

Umaro Seide é um dos alunos da Unilab, vindo da Guiné-Bissau, em 2022. Cursa Antropologia e pretende seguir com um mestrado na Universidade Federal do Ceará. Apesar de integrativa, ele relata que sofre preconceito dentro e fora da Universidade. “Pessoas que não querem te aceitar. Isso acontece muito, mesmo na turma.”

Para a professora Rosalina, isso ocorre pelo não reconhecimento da população negra no Ceará, a principal problemática do estado, segundo ela. “É tudo muito sutil. Quando você entra nos estabelecimentos, percebe que está sendo observado. Aqui sentimos bastante por esse processo histórico da negação. Ao mesmo tempo que foi o primeiro Estado a libertar os negros, há a negação destes negros aqui”, diz.

O mesmo foi dito por Roberta, da Venezuela. Ela diz que é constantemente “rodeada” em locais públicos, algo que segue sem compreender, mesmo após cinco 5 anos em território brasileiro. “Não faz sentido. Isso é coisa de pessoas que estão na época dos “cavernetos” (cavernas). O Brasil é diverso, meu país é diverso, não é só uma cor, são muitas cores. Só falta o ser humano compreender e respeitar isso”, diz.

Quadro geral de assistência do Ceará aos seus migrantes e refugiados

Todos os contatados estavam presentes na 1ª Conferência Estadual de Migração, Refúgio e Apatridia do Ceará (Comigrar-CE) que tem por objetivo a discussão e o levantamento de propostas sobre as demandas da migração no estado. Após, as ideias serão discutidas em uma conferência nacional, que visa a elaboração 1º Plano Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia.

No geral, o Ceará tem reconhecimento positivo por suas políticas de migração. Conta, por exemplo, com um Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, desde 2018.

De acordo com estimativas, foram mais de 900 pessoas atendidas em 2023, em quase 3.000 ações de encaminhamento. O principal país de origem é a Venezuela (54%), seguido por Guiné-Bissau, Cuba e Colômbia.

A iniciativa se divide em eixos, conforme explica a coordenadora Jamina Teles. O foco são pessoas em situação de vulnerabilidade social e a principal ação realizada é a emissão de documentos, desde solicitação de um CPF, até encaminhamentos jurídicos.

“Também temos ações de empregabilidade, com organizações parceiras. Fazemos ainda ações em locais de atendimento ao migrante, como a Pastoral do Migrante, a Casa do Migrante e a Polícia Federal”, afirma ela.

Em 2023, o estado foi premiado pelo quarto ano seguido com selo MigraCidades, certificação da Agência da ONU para as Migrações (OIM).

Além disso, em 2022, foi sancionada a Lei 17.889, da Semana Estadual do Migrante e do Refugiado no Estado do Ceará, que integra o Calendário Oficial de Eventos e de Datas Comemorativas do Estado. Data é celebrada na semana em que do dia 25 de junho, Dia Nacional do Imigrante.

Colaborou a repórter Alexia Vieira

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