Castello Branco: marechal cearense foi um ditador como os outros

Primeiro presidente do regime militar (1964-1985), Castello Branco era comumente vinculado à imagem de equilíbrio. O cearense editou quatro atos institucionais e estabeleceu as bases em cima das quais a ditadura se estabeleceu

"Caminharemos para a frente com a segurança de que o remédio para os malefícios da extrema-esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária, mas o das reformas que se fizerem necessárias". O tom moderado com o qual o general fortalezense Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967) tomou posse como presidente da República, em 15 de abril de 1964, sinalizava as razões pelas quais seu nome emergira como possibilidade real de comando para o País, assim que instalado o regime militar.

No dia 18 de março, estreia Castello, o Ditador, filme original da plataforma de multistreaming O POVO+. O documentário abordará o período de instalação da ditadura militar e o papel desempenhado pelo cearense, primeiro ditador do regime dos generais. 

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Ungido à missão por uma junta de militares golpistas, Castello Branco, já tendo comandado a 3ª Seção do Estado-Maior do Exército (EME) e a 10ª Região Militar (10ª RM), era consenso para aquela hora, tido como detentor de perfil ponderado e não vinculado às aspirações mais radicais de alguns de seus colegas de farda, inclusive os que viriam a sucedê-lo no cargo.

O fator atenuava o medo de alguns setores da sociedade civil que, favoráveis à deposição de João Goulart da Presidência da República em razão da propagada ameaça de uma ditadura comunista, não exatamente gostariam de assistir ao nascimento e fechamento de um regime militar — inicialmente pensado para ser tão somente um período transitório, após o qual novas eleições presidenciais diretas seriam convocadas —, com generais se sucedendo por 21 anos (1964-1985) na direção do País.

Embora as feições ditatoriais e centralizadoras tenham ganhado maior nitidez com a edição do ato institucional número 5 (AI-5), em 1968, os atos anteriores, baixados pelo governo de Castello Branco, cimentaram os alicerces para os anos de chumbo, período situado entre 1968 e 1974 durante o qual o aparelho repressor estatal trabalhou com maior violência. Censura às artes e à imprensa, prisões e torturas de opositores da ditadura foram os principais expedientes daqueles anos.

A cúpula do golpe

A junta militar golpista que escolheu Castello atendia pelo nome autoatribuído de "Comando Supremo da Revolução". O grupo foi formado no dia 2 de abril para assumir o controle efetivo do País até a posse do novo mandatário. O presidente da Câmara dos Deputados de então, Pascoal Ranieri Mazzilli, sentou interinamente na cadeira de presidente da República até lá. O Comando Supremo da Revolução era integrado pelo general Arthur da Costa e Silva, como representante do Exército Brasileiro; pelo brigadeiro Fracisco de Assis Correia de Melo, pelo lado da Aeronáutica; além do vice-almirante Augusto Rademaker, representando a Marinha.

"Então, o golpe acontece, o poder passa legalmente para o Ranieri Mazzilli, mas de forma efetiva quem comanda o País é o chamado Comando Supremo da Revolução. Na prática, quem realmente se impõe é o presidente Costa e Silva, que é um militar ultrarradical, um reacionário que defende medidas duras contra os inimigos do regime, contra os apoiadores do João Goulart. Então, essa pretensão de um regime de força, de uma ditadura que se implanta já nos dias seguintes ao golpe, frustra muitos setores liberais, embora de início esses setores não tenham rompido com o regime", explica o historiador Airton de Farias ao O POVO.

A eleição na ditadura

O clima favorável a Castello Branco ficou refletido entre deputados federais e senadores em 11 de abril de 1964. Por eleição indireta, amplíssima maioria do Congresso Nacional o elegeu, com 361 votos. A segunda colocação foi ocupada por outro cearense, Juazez Távora (PDS), com três votos. Ex-presidente do Brasil (1946–1951), Eurico Gaspar Dutra totalizaria dois votos. Foram 109 abstenções ou ausências. 

"O calor da opinião pública, através de autênticas manifestações populares e de numerosas entidades de classe, estimulou-me a essa atitude. Agora, espero em Deus corresponder às esperanças de meus compatriotas, nesta hora tão decisiva dos destinos do Brasil, cumprindo plenamente os elevados objetivos do Movimento vitorioso de abril, no qual se irmanaram o povo inteiro e as Forças Armadas, na mesma aspiração de restaurar a legalidade, revigorar a democracia, restabelecer a paz e promover o progresso e a justiça social", disse o presidente naquele dia, conforme arquivos disponíveis na Biblioteca da Presidência da República.

Inicialmente, o mandato de Castello chegaria ao fim em 31 de janeiro de 1966. Contudo, já em 1964, o governo foi prorrogado até 15 de março de 1967. O Congresso entrou noite adentro e amanheceu com a matéria aprovada às 5h20min de 17 de julho de 1964. No encerramento da votação, tumulto no plenário. Vários deputados apontavam somente 204 votos, um a menos que o necessário à aprovação da prorrogação do mandato. Auro de Moura Andrade, presidente do Senado e daquela sessão, informou, então, que o 205º voto era do deputado paraibano Luís Bronzeado. Que, entretanto, havia sido colhido quando do término da sessão, o que desencadeou protestos.

"As pessoas que me falaram sobre o assunto sempre respeitaram o meu ponto de vista contrário à proposição do senador João Agripino. Apesar da minha repetida rejeição à idéia, muitos políticos trabalharam para a sua consecução, formando-se mesmo uma corrente favorável e ponderável no meio revolucionário e político", disse o presidente ao programa Voz do Brasil.

"Tenho diante de mim não mais uma solução única, que consistiria em atingir, com o melhor dos meus esforços, a 31 de janeiro de 1966, e sim a alternativa de não concordar, por um ato pessoal, ou de cumprir a missão que agora me é entregue. Procuro discernir o que me cumpre fazer. Não quero desertar do destino da Revolução", complementou o primeiro ditador do regime militar.

Formação

Filho do general Cândido Borges Castelo Branco e de Antonieta de Alencar Gurgel, Humberto de Alencar Castello Branco nasceu em Fortaleza em 20 de setembro de 1897. A data, contudo, foi alterada para o ano de 1900, de forma que conseguisse ensino gratuito. Era uma prática comum na época. Castello e o gaúcho Arthur Costa e Silva, seu futuro sucessor, foram colegas de colegial. Eles estudaram no Colégio Militar de Porto Alegre. Castello foi o único aluno cearense da turma. Em 1916, foi designado orador da Sociedade Cívica e Literária, grupo fundado pelos alunos daquele colégio para a discussão de questões políticas e literárias que estavam na ordem daqueles dias.

Ex-presidente Castello Branco
Ex-presidente Castello Branco Crédito: Arquivo Nacional

Era o último ano de curso e o rendimento e a conduta de Castello lhe renderam o posto de capitão do batalhão escolar. Costa e Silva lhe superara, assumindo o posto de comandante. Passada a estada no Sul, o jovem cearense migrou para o Rio de Janeiro, para a Escola Militar de Realengo — instituição formadora de oficiais do Exército —, em 22 de abril de 1918. Em 1920, antes de completar 20 anos "oficiais" de idade, 1,67 metro de altura, o franzino encarou o pavor da "rampa da morte".

A inovação nas aulas de educação física consistia na escalada de um ponto íngreme, seguida de um salto por cima de um fosso profundo, após o qual uma cerca de arame farpado aguardava os alunos, que concluíam a missão após atravessarem-na rastejando. A diferença é de que, na manhã de 23 de março de 1920, a missão foi executada com os jovens cadetes trajados com o fardamento de campanha, ou seja, de capacete e mochila, com um rifle mosquetão a tiracolo. Chegada a hora de Castello pular, o salto não foi bem calculado, tampouco bem executado. Despencou do alto e machucou a perna esquerda, deixando a aula de maca.

A descrição do acidente está narrada na biografia "Castello: a marcha para a Ditadura" (Companhia das Letras), escrita pelo jornalista Lira Neto, também autor de uma trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas e ex-profissional do O POVO, onde foi repórter, editor e ombudsman. A Escola Militar de Realengo era um espaço de elevada rigidez, consequência direta do período de profissionalização pelo qual passava o Exército.

Castello foi formado em meio a um ambiente no qual instrutores vindos do exterior traziam consigo ideias de reformulação completa a serem aplicadas em quartéis e escolas militares do País. Regulamentos foram atualizados e novas disciplinas foram introduzidas ao currículo dos alunos. Manuais de disciplina alemães foram traduzidos para o português, com passo a passo aplicados à risca. Mustafa Kemal Ataturk, então presidente da Turquia, frequentava o noticiário mundial em razão das medidas que pregava para acentuar o rigor do regime turco muçulmano, razão pela qual os novos instrutores no Brasil foram batizados de "jovens turcos".

Às cinco da manhã, alunos já estavam com meias e coturnos calçados, uniformes impecáveis para formarem fileiras no pátio central da escola. Em campo, carregavam sacos de 80 quilos, subiam cordas e jogavam sacos à distância. A rotina diária era bem diferente dos padrões convencionais: almoçavam todos às 9 horas. Às 10 horas, os cadetes recebiam conteúdos técnicos. Às 15 horas, jantavam e, a partir das 16 horas, podiam passear por Realengo. Tinham de estar de volta às 18 horas, quando ocorria a chamada para averiguação de eventuais ausências. Os alunos poderiam estudar até 21 horas. O dia encerrava às 22 horas.

Castello tinha sintonia com a doutrina dos "jovens turcos". O senso de disciplina era incompatível com as escapadelas engenhosamente planejadas e executadas pelos colegas enquanto os responsáveis pela manutenção da escola dormiam. Em 1922, o cearense estava em Belo Horizonte, no 12º Regimento de Infantaria (12º RI). Ele havia pedido licença para visitar a mãe no Rio de Janeiro. Sentira que se aproximara o dia da morte dela. Antonieta morreria aos 51 anos. O pai, Cândido, passaria a viver com as duas filhas mais novas, Nina e Beatriz, pois o primogênito, Candinho, entrara na Marinha mercante. O caçula Lauro mudou-se para o Ceará para tratamento de asma, razão pela qual teve de parar com os estudos iniciados no Colégio Militar do Rio de Janeiro.

Em "Castello: a marcha para a Ditadura", há a reprodução de trecho de carta em que Castello, quase cinquenta anos após o último encontro com a mãe, escreve à irmã Beatriz sobre Antonieta: "Eu a conheci de coração para coração, mas a vi sempre na pobreza, em meio a apertos financeiros, ajudando resignadamente a Papai e querendo heroicamente nos educar." Castello convenceu a esposa, Argentina Martins Vianna, a dar à filha deles o nome da mãe. Contra o pleito do sogro, o comendador Arthur Vianna, desejoso de que a primeira neta fosse batizada com o nome da esposa: Cherubina.

Se as emoções de Castello estavam vulneráveis, o cenário na caserna era de ebulição. Na iminência de eclodir, uma revolta de tenentes pela derrubada do presidente Epitácio Pessoa visava impedir a posse de Arthur Bernarndes, presidente eleito. Castello não compactuou com a sublevação, tornando-se mal visto pelos revoltosos, entre os quais o conterrâneo Juarez Távora — contra quem viria a disputar a presidência na eleição indireta de abril de 1964.

Dois anos depois da primeira revolta, em julho 1924, Castello seria preso. Os quartéis brasileiros mais uma vez se puseram em sinal de batalha para a Revolta Paulista. O plano em marcha consistia na derrubada de Arthur Bernardes. O militarismo estava descontente com os rumos do País nas mãos de civis. O tenente Castello mantinha-se leal à conduta de aversão ao tipo de movimento, mas foi confundido como simpatizante da revolta. Foi "convidado" pelo Ministério da Guerra a comparecer a breve interrogatório, após o qual foi encarcerado, suspeito de adesão ao levante.

Passados dois meses, em setembro de 1924, ao deixar a prisão no mês de aniversário, foi convocado a apresentar-se à Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) na Vila Militar do Rio de Janeiro. Os apelidos decorrentes das limitações físicas eram uma chaga na mente do jovem cearense magricela, que facilmente compreendeu que poderia se sobressair em relação aos colegas nas demais áreas. Foi um período em que ele se debruçou sobre os estudos de modo obstinado. Sobretudo para superar seu antigo instrutor, Henrique Batista Duffles Teixeira Lott.

Em dezembro de 1924, Castello Branco compareceu à cerimônia de encerramento do curso da EsAO com a expectativa de ouvir o nome anunciado pelo microfone como primeiro da turma. Os dois encabeçaram uma lista de cinquenta concludentes naquele ano. Lott obteve média de 8,587. Castello totalizara 8,179. Lott e Castello estariam "juntos" 20 anos depois.

Segunda Guerra Mundial

A declaração de guerra do Brasil à Alemanha e à Itália, em agosto de 1942, fez com que oficiais brasileiros fossem enviados aos Estados Unidos para cumprir estágio em bases militares, a maioria sendo na Escola de Comando e Estado-Maior de Fort Leavenworth, no Kansas.

O treinamento permitiu a oficiais que se familiarizassem com os métodos de combate americanos, que visavam substituir os métodos franceses até então utilizados pelos brasileiros. O grupo retornou ao Brasil em outubro de 1943.

No ano seguinte, sob a insígnia de Força Expedicionária Brasileira (FEB), o 1º escalão do grupo, do qual Castello era membro, embarcou rumo à Nápoles, na Itália. A embarcação deixou o Brasil de 30 de junho para 1º de julho e ancorou em território italiano em 16 de julho. O comando do návio General W. A. Mann, dos Estados Unidios, estava sob o general Zenóbio da Costa.

A bordo do General Mann, o correspondente do Diário Carioca, o cronista Rubem Braga, escreveu: "Sua-se, meus senhores, sua-se aos litros, sua-se aos potes, sua-se aos cântaros neste navio trancado". Ele ainda definiria o semblante dos militares que não recebem cartas como "de náufrago". A definição cabia a Castello, segundo a obra "Castello: a marcha para a Ditadura". Ele conjecturou que Argentina o havia abandonado.

O livro reproduz trecho da carta que enviou à esposa Argentina: "Ontem à noite, houve um derrame de cartas no acampamento. Precipitei-me à procura de alguma a mim destinada. Foi em vão, como tem sido todas as outras vezes. Sou o único oficial que tem nas mãos apenas uma única carta, uma pequena folha de papel. Dessa maneira eu me debato aqui em conjecturas, ilhado completamente dos meus".

Ideologia 

Durante a o exercício da Presidência, em São Paulo, o general Castello Branco apoiou-se em retórica mais ideológica do que pragmática. Distante do tom de quem, ao ser eleito pelo Congresso Nacional, afirmara que o remédio para o extremismo de esquerda não seria uma direita reacionária, mas o caminho das reformas que se mostrassem necessárias.

Em 8 de maio de 1964, comemorara-se o 19º aniversário da vitória dos Aliados contra Berlim, que culminou no fim da Segunda Grande Guerra (1939-1935). Deu-se um jantar íntimo com ex-combatentes da FEB no qual Castello abriu uma comparação entre a guerra ao nazismo na Itália e a caçada aos comunistas que se desdobrava àquele momento no Brasil.

"Na verdade, o Brasil está combatendo a ideologia comunista, como a FEB soube combater a ideologia nazista nos campos de batalha. Na verdade, o povo brasileiro, ao se levantar em armas, procurou restabelecer a autodeterminação e o ambiente das liberdades fundamentais que vinham sendo massacrados pelos comunistas infiltrados em todas as partes do Governo Brasileiro", afirmou aos antigos pares.

"Não resta a menor dúvida, meus amigos, de que o orador deste jantar foi muito feliz ao dizer que o que houve foi a repetição, no interior do Brasil, de tudo quanto propugnávamos na campanha da Itália, mas é preciso uma advertência: a campanha de agora começou, mas ainda não terminou. É preciso conservar no interior de cada um de nós, na ação de cada um de nós, bem aceso o espírito de luta contra a ideologia comunista que, absolutamente, ainda não está suprimida ou extirpada no Brasil", complementou.

Castello Branco morreu aos 69 anos, em 18 de julho de 1967, na primeira visita ao Ceará após deixar o poder, numa colisão entre aeronaves quando retornava do sítio da amiga Rachel de Queiroz, em Quixadá.

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