Entre manobras fraudulentas e falso alarme de golpe na Guiné-Bissau: golpe para que e contra quem?
Não era um golpe contra o regime político no poder ou contra Sissoco, mas sim um golpe contra a democracia e vontade popular expressa de forma inequívoca nas urnas pelo povo guineense
11:29 | Dez. 08, 2025
No seu livro intitulado A Terceira Onda: a democratização no final do século XX, o cientista político estadunidense Samuel P. Huntington (1991) considera a transição de cerca de trinta países de sistemas políticos não-democráticos para sistemas políticos democráticos, como o desenvolvimento político global mais importante do final do século XX. “É um esforço para explicar por que, como e com consequências imediatas essa onda de democratização ocorreu entre 1974 e 1990” (HUNTINGTON, 1991, p.07). É um marco histórico que assinala aquilo que o autor chama da terceira onda de democratização.
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Foi a partir desse marco que boa parte dos países africanos, especialmente países historicamente colonizados por Portugal, deram início ao processo de democratização. O processo como um todo teve raízes nos ideais e princípios liberais de democracia e fortemente influenciado pelas instituições multilaterais de Bretton Woods, nomeadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetária Internacional.
No caso específico da Guiné-Bissau, desde a proclamação da sua independência em 1973 até 1990, o exercício do poder político era reservado única e exclusivamente ao partido que dirigiu a luta de libertação nacional, Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Em 1991, com a revisão constitucional que extinguiu o artigo 4 da Constituição da República que considerava o PAIGC “como a única força política dirigente da sociedade e do Estado”, a Guiné-Bissau colocou fim ao regime do partido único, esse novo quadro de pluralismo ideológico e político possibilitou a criação de dezenas de partidos.
Com a adoção do multipartidarismo, o país adota o regime democrático de pendor semipresidencialista, que separa as competências e campos de atuação do presidente da República (PR) e do primeiro-ministro (PM). Ou seja, a constituição prevê que o PR seja eleito pelo voto popular direto, enquanto o PM indicado por partido ou coligação que consegue formar uma maioria na Assembleia Nacional Popular (ANP), competindo ao PR apenas a sua nomeação com observância do artigo 98º, que estabelece os termos da nomeação com base nos resultados eleitorais e ouvidos os partidos políticos representados na Assembleia Nacional Popular. Esse novo quadro de pluralismo ideológico e político permitiu as emergências de diversas formações político-partidárias e a autonomia das organizações da sociedade civil já existentes à época perante o Estado, que outrora eram dependentes ou braços do partido único que exercia o monopólio do poder político, bem como possibilitou a proliferação de novas outras organizações cívicas.
As primeiras eleições gerais democráticas tiveram lugar em 1994. De lá para cá, a história política da Guiné-Bissau tem sido marcada por conflitos e instabilidade político-institucional de várias ordens. Trata-se de um país com um histórico de dissolução de parlamento. Desde abertura democrática até os dias atuais, a ANP foi dissolvida quatro vezes, por três presidentes diferentes, ora de forma ilegal ora sem fundamento forte: em 2002, foi dissolvida pelo presidente Kumba Ialá, que acusou os deputados de quererem limitar os seus poderes, enquanto PR; em 2008, pelo presidente João Bernardo Vieira (Nino), que a dissolveu após crise política com o PAIGC; em 2022 e 2023 pelo presidente Umaro Sissoco Embaló, que alegou corrupção e bloqueio institucional; e, por último, em 2023, pelo presidente Umaro Sissoco Embaló, que evocou a tentativa de golpe de Estado. Com a exceção destas últimas eleições presidenciais e legislativas interrompidas, foram organizadas seis eleições presidências, mas a Guiné-Bissau já teve doze presidentes da República, e sete eleições legislativas, com vinte oito primeiros-ministros ou governos. Numa situação de estabilidade política, o normal seria ter seis presidentes e sete primeiros-ministros. Além disso, o país já sofreu cinco golpes de Estado, contando com o falso alarme de golpe do dia 26 de novembro de 2025, e dezenas de tentativas de golpes.
Tais conflitos quase sempre foram associados à relação amarga entre o PR e o parlamento ou com o PM, que, na sua grande maioria, não tem nada a ver com divergências ideológicas ou partidárias, mas sim com problemas de ordem pessoal e apetite autoritário do primeiro em querer controlar e interferir nas competências do governo liderado por um PM ou no próprio parlamento.
A própria figura-chave na conjuntura política atual emergiu-se num contexto de conflito político entre José Mário Vaz, o então presidente da República, com o Domingos Simões Pereira, o primeiro-ministro à época. Ambos eram militantes do PAIGC. É nesse contexto que surgiu o Umaro Sissoco Embaló, que até antes da sua nomeação como PM era uma figura desconhecida na política e se autointitulava “General” na Reserva das Forças Armadas guineenses. Uma nomeação cujo fundamento legal era amplamente questionável e contestado, por não resultar das urnas ou indicação do partido com maioria na ANP. Mesmo assim, exerceu a função do PM entre novembro de 2016 e 2018, um mandato marcado por desmandos e autoritarismo. Em 2018, abandonando o seu antigo partido, PAIGC, ele e outros 15 deputados e dirigentes, expulsos do PAIGC por indisciplina partidária, formaram uma nova formação política conhecida como Movimento para Alternância Democrática (MADEM G-15).
Em 2019, tiveram lugar as eleições presidenciais na Guiné-Bissau, nas quais Umaro Sissoco Embalo, suportado pelo MADEM G15, foi declarado vencedor pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) no segundo turno, com 53,55% dos votos contra 46,45% do seu oponente Domingos Simões Pereira, suportado pelo PAIGC. As eleições foram tidas como fraudulentas e contestadas pelo seu oponente no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, enquanto este apreciava o recurso sobre a possível fraude eleitoral, o órgão máximo foi invadido por militares não “identificados”, forjando uma fuga do presidente do STJ para o Portugal. O candidato declarado vencedor avançou com a tomada de posse, o que ele chama de “simbólica”, no dia 27 de fevereiro de 2020, de forma arbitrária e unilateral em um hotel, à revelia do Presidente da ANP, Cipriano Cassama, e com a ausência do presidente do STJ, Pedro Sambú.
Sissoco começou a exercer o poder enquanto presidente logo depois da posse. Passando quase sete meses, em setembro do mesmo ano de posse, o STJ delibera improcedente o recurso do Domingos Simões Pereira, adversário político do Sissoco. Foi neste contexto que Umaro Sissoco Embalo exerceu seu poder, marcado por violações sistemáticas da Constituição da República, desmonte das instituições democráticas, violação dos direitos humanos, ataque às liberdades democráticas, divisionismos étnicos e religiosos, sequestros e espancamentos de vozes críticas ao seu governo, perseguição de adversários políticos, ataques recorrentes à imprensa nacional e internacional.
Durante sua presidência, a ANP foi dissolvida duas vezes, como citado anteriormente, sem base legal; exonerou cinco primeiros-ministros. Na área da comunicação, a Rádio Capital, um órgão de comunicação privado, foi duas vezes alvo de ataque e vandalismo por militares não “identificados” resultando em vítimas de jornalistas; cerca de uma dezena de jornalistas foram vítimas de sequestro e espancamento; recentemente, no último mês de agosto, o seu regime mandou encerrar as delegações da RTP, RDP e Agência Lusa, todas imprensas portuguesas que operam na Guiné-Bissau há décadas. Já em relação à relação à exploração petrolífera, em outubro de 2020, foi denunciado por ter assinado secretamente, à revelia do parlamento e do PM, um acordo de exploração de petróleo com o Senegal; e em novembro de 2025, foi anunciado o acordo com a petrolífera norte-americana Chevron em dois blocos de águas territoriais do país, no qual a Chveron fica com 90% de benefício, enquanto a Guiné-Bissau fica com apenas 10%, tudo isso à revelia da ANP.
Chegando o fim do seu mandato no passado 27 de fevereiro deste ano, Umaro Sissoco Embalo forjou o argumento de que embora tenha tomado posse em 27 de fevereiro de 2020, só foi reconhecido como presidente da República pelo STJ em setembro de 2020. Portanto, segundo ele, o mandato terminaria em setembro de 2025 e não em 27 fevereiro, uma decisão arbitrária e sem fundamentos legais, amplamente contestada pela oposição, mas sem sucesso.
As eleições só foram marcadas em 23 de novembro de 2025, com a exclusão dos principais partidos e figuras da oposição, como a Plataforma da Aliança Inclusiva — Terra Ranka (PAI-Terra Ranka), que integra o PAIGC, o Partido da Convergência Nacional para a Liberdade e o Desenvolvimento (COLIDE -GB), a Aliança Patriótica Inclusiva – Cabaz Garandi (API-Cabaz Garandi), de que faz parte o Partido da Renovação Social (PRS) e figuras políticas com popularidade inquestionável no cenário político guineense, como Domingos Simões Pereira. No entanto, como alternativa, a oposição apoiou o candidato independente Fernando Dias da Costa, que foi suportado pela PAI Terra Ranka e API — Cabaz Garandi, coligações excluídas arbitrariamente das eleições pelo regime liderado por Umaro Sissoco Embalo.
Ainda que em um contexto de confiscação de liberdades políticas e civis e tentativa de fraude pelo regime no poder, a apuração dos resultados eleitorais em nove das 11 regiões eleitorais que constituem a contagem eleitoral, com a exceção das diásporas Europa e África, a contagem e projeção davam uma larga vitória ao Fernado Dias da Costa, em detrimento do Sissoco, presidente cessante. No entanto, no dia 26 de novembro, um dia antes da data prevista para a divulgação oficial dos resultados provisórios, o país foi surpreendentemente confrontado com tiros e invasão de militares pela capital do país, nas instalações da CNE e no centro da cidade, onde fica a Presidência da República. Antes mesmo do pronunciamento dos nomes que viriam a assumir o golpe, o presidente cessante, supostamente deposto da função, foi o primeiro a anunciar para Jeune Afrique e France 24 que teria sido sequestrado por militares e que seria vítima de um golpe. Horas depois, um grupo de militares ligados ao presidente cessante, autointitulado Alto Comando Militar, declaram à imprensa que deram golpe para assumir o destino do país nos próximos tempos, com alegação de que descobriram um depósito de armamento de guerra no país. Além disso, anunciaram a suspensão imediata do processo eleitoral em curso. Pouco tempo depois, soube-se que quase dezenas de políticos de oposição, nomeadamente Domingos Simões Pereira, Octávio Lopes, Roberto N´Besba, entre outros, foram sequestrados pelo Alto Comando Militar.
Umaro Sissoco acabou por sair do país com destino ao Senegal, porém não foi acolhido, devido à pressão da sociedade civil senegalesa e de algumas autoridades, tomando então o destino do Congo Brazzaville. Um dia depois de sua “fuga”, o Alto Comando Militar escolheu para o presidente da transição uma figura militar da família política de Umaro Sissoco, Horta Inta-a, que antes da sua nomeação, era Chefe de Estado Maior Particular do ex-presidente Sissoco. Em decorrência da sua posse, Inta-a nomeou como Chefe de Estado Maior das Forças Armadas Tomas Djassi, ex-presidente da Casa Civil na presidência de Umaro Sissoco Embalo. Ainda formaram um governo cujo primeiro-ministro, Ilídio Vieria Té, era o então Ministro das Finanças durante o regime do Sissoco e seu diretor de Campanha, que por sua vez formou um governo apenas com figuras próximas e da família política do Sissoco. O governo formado pelo Alto Comando Militar conta com apenas cinco militares e vinte e três políticos civis. Aliás, até o corpo de segurança que hoje presta serviço para o atual presidente de transição, Horta Inta-a, era a mesma escolta do Sissoco durante a sua presidência. Ou seja, tudo gira em torno de Sissoco e ele continua ditando as regras do jogo, mesmo com sua saída simulada para interromper o processo eleitoral, do qual foi derrotado pela oposição.
Portanto, o chamado golpe foi uma cortina de fumaça para anular o processo eleitoral em curso. As sequências dos eventos não nos deixam mentir. Por exemplo, a CNE declarou improcedente o processo eleitoral em curso e que não há condições técnicas para anunciar os resultados eleitorais, que dariam vitória ao candidato de oposição, com alegação de que tiveram as suas instalações invadidas por pessoas “desconhecidas” durante o autogolpe orquestrado por Sissoco e seu regime déspota. Portanto, não era um golpe contra o regime político no poder ou contra Sissoco, mas sim um golpe contra a democracia e vontade popular expressa de forma inequívoca nas urnas pelo povo guineense, no passado dia 23 de novembro de 2025.
Não obstante os passos dados por Sissoco na aparente consolidação do poder, através do Alto Comando Militar instalado e comandado por ele, mesmo fora do país, a realidade aponta que o poder está em disputa e que os próximos tempos serão de tensões imprevisíveis. Isso ficou evidente com a última garantia dada pelo Mário Siano Fambé, diretor de campanha do Fernando Dias da Costa, de que o candidato independente suportado pela API-Cabaz Garandi e PAI Terra Ranka, Fernando Dias da Costa, tomará posse como Presidente da República nos próximos tempos.
Braima Sadjo é sociólogo guineense, professor e doutorando em Sociologia na UnB