Sob bombas ou no exílio, milhares de crianças de orfanatos na Ucrânia vivem situação 'caótica'

Bloqueadas sob bombas, ou exiladas em países com uma recepção desorganizada e com traficantes à espreita, dezenas de milhares de crianças em orfanatos da Ucrânia estão em uma situação "caótica" - alertam ONGs e especialistas.

A Ucrânia é um caso incomum, com o maior número de crianças na Europa - pelo menos 100 mil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) - em uma vasta, opaca e muitas vezes disfuncional rede de orfanatos, internatos, ou instituições para deficientes.

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Havia "dezenas de milhares de crianças vivendo nessas instituições antes da guerra, é enorme", adverte a coordenadora do coletivo Juntos contra o Tráfico Humano da Caritas França, Geneviève Colas.

Para a maioria, a situação atual é "caótica", diz à AFP a representante na Ucrânia do grupo de direitos humanos Disability Rights International (DRI), Halyna Kurylo.

"Muitas instituições foram esvaziadas de forma duvidosa. Algumas crianças foram deixadas para trás, porque não podiam se deslocar por causa de sua deficiência. Algumas instituições foram para o oeste e se fundiram com outras, suas instalações estão superlotadas (...) E, na confusão, as crianças podem se perder", alerta.

Em 25 de fevereiro, uma instituição que abrigava 55 crianças de até 4 anos em Verozel sofreu um bombardeio russo.

"Felizmente, as crianças e os funcionários não estavam no prédio", afirma a diretora na Ucrânia da ONG Hope and Homes for Children, Halyna Postoliuk.

A decisão de esvaziar o local ainda não havia sido tomada neste dia, o que se tornou impossível, diante da intensidade dos ataques. Foi apenas em 9 de março, que as 55 crianças puderam ser levadas para um hospital infantil em Kiev, mais a oeste.

Outro grupo de crianças de 5 a 14 anos de uma instituição em Nezhin viveu uma odisseia de quase 1.000 km, de leste a oeste da Ucrânia, para fugir das bombas, contou por telefone Marieta, diretora deste centro que acolhe menores, cujas famílias não podem cuidar deles.

"Os russos começaram a se aproximar. As crianças ouviam os tiros, as explosões. Foi traumatizante para elas", lembra.

Algumas famílias foram buscar seus filhos, mas, isso foi impossível no caso de sete delas, devido a problemas de acesso. As autoridades decidiram retirá-las de ônibus e juntá-las com outra instituição em Nijni Vorota. São 24 horas de distância por estrada, perto da fronteira com a Eslováquia.

As janelas do ônibus tinham cortinas para que "as crianças não vissem casas destruídas, mortos", acrescenta Marieta.

"Três dias depois que partimos, os russos se aproximaram de Nezhin. Não teríamos conseguido deixar a cidade se tivéssemos ficado mais tempo", completa.

Além dos combates, outros perigos espreitam os menores. Na Ucrânia, essas instituições formam "um enorme sistema desorganizado com pouco controle. No caos desta guerra, as crianças são presas fáceis para organizações criminosas", adverte o fundador e diretor-executivo da DRI, Eric Rosenthal.

Os temores remontam a antes da guerra, quando a Ucrânia já era palco de abusos em alguns orfanatos, incluindo trabalho forçado em residências particulares e exploração sexual.

Surgiram até acusações de adoções ilegais e tráfico de órgãos, diz Rosenthal, citando o exemplo de 2014, após a anexação da Crimeia

"Crianças desapareceram de orfanatos e foram levadas para a Rússia. Outras foram deslocadas dentro da Ucrânia sem serem identificadas", relata.

Nas últimas semanas, "sabemos que crianças foram transferidas de orfanatos para países vizinhos, como Romênia, ou Moldávia, mas nesses países também há um grande problema de tráfico", acrescenta.

Cerca de 70.000 dos menores internados viviam nas regiões atingidas pela violência da invasão russa iniciada em 24 de fevereiro, segundo a ONG Rede de Direitos das Crianças Ucranianas.

Cerca de 31.000 crianças que ainda tinham pais, ou tutores legais, voltaram para eles, embora sua situação esteja em risco, se essas famílias não puderem acolhê-las adequadamente.

Contactada em Lviv, no oeste da Ucrânia, a americana Colleen Holt Thompson, de 55 anos, voluntária em orfanatos ucranianos desde 2006, faz um alerta.

Mãe adotiva de seis ucranianos, ela correu para Lviv em 3 de março para ajudar a socorrer órfãos e continuar seu processo de adoção de uma adolescente, iniciado começou há três anos. Ela disse ter ficado "chocada" com o "caos" da retirada destes menores.

Segundo dados oficiais do final de março, 3.000 crianças foram transferidas para o exterior, principalmente para Polônia, Alemanha, Itália, Romênia, Áustria e República Tcheca.

"Nenhum governo está preparado para essas acolhidas em grande escala", diz Thompson à AFP.

"Mas minhas preocupações aumentaram quando recebi ligações de pessoas do governo, perguntando se tínhamos os nomes, ou as idades, das crianças que estavam viajando para Lviv de ônibus, ou de trem, e que não tinham vestígios de sua identidade, ou de seus acompanhantes", comentou.

Também afirma ter recebido ligações "perturbadoras" de uma pessoa que lhe pediu uma lista de crianças de um orfanato que sua rede estava tentando retirar de Mariupol, especialmente menores em processo de adoção dos Estados Unidos.

"Essa pessoa dizia que poderia levar as crianças para a Grécia com um avião particular. Isso é loucura! Há preocupações muito sérias em relação ao tráfico de crianças", adverte.

"Posso garantir a você: haverá crianças que nunca mais vão voltar para a Ucrânia, e outras que vão se perder. E existem, atualmente, milhares de crianças em hotéis, acampamentos, ou em casas particulares com pessoas que não sabemos se são confiáveis", reforça.

Maure, a adolescente de 18 anos que ela está adotando, chegou a um orfanato aos 4 anos e já foi retirada de seu centro em Donetsk, quando a guerra contra os separatistas pró-russos no leste da Ucrânia começou em 2014. Agora, foi transferida para um orfanato em Lviv, onde se refugia em um "bunker" quando as sirenes tocam.

"O diretor do centro quer levá-la com as outras crianças para a Áustria", relata Thompson.

Embora o governo tenha imposto, em 12 de março, regras para a retirada e para o monitoramento dessas crianças, ainda há muito a ser feito, de acordo com as ONGs.

A Rede de Direitos da Criança estima que 2.500 menores precisam ser transferidos com urgência das zonas de combate.

"As crianças estão apavoradas. Os mais velhos tentam tranquilizar os pequenos", conta a diretora do programa Aldeias Infantis na Ucrânia, Darya Kasyanova.

"Os responsáveis notam um atraso no desenvolvimento dessas crianças, que comem pouco e dormem mal", alerta.

As fronteiras também são territórios de risco.

Thomas Hackl, da Caritas Romênia, que abriu um centro no posto fronteiriço de Siret, afirma que, recentemente, sua equipe deteve um homem que tentava levar duas jovens ucranianas para a Itália.

"Sabemos que os traficantes se misturam na população, propõem um meio de transporte. Havia muitos sinais que nos levavam a desconfiar desse homem: ele insistia demais, queria levá-las para um lugar específico (...) São muitas histórias como essa por aqui", explica.

Na passagem de fronteira, ou nos países por onde transitam, as crianças correm o risco de se encontrarem em um veículo com um estranho, ou em alojamentos com o risco de se tornarem "uma pequena escrava doméstica", ou serem exploradas sexualmente, diz Colas, da Caritas França.

Contactada pela AFP na fronteira entre Ucrânia e Moldávia, Yuri Tsitrinbaum, da ONG IsraAID, que ajuda desde o final de fevereiro, afirma que, nas primeiras três semanas de guerra, a situação era "caótica".

Depois, o fluxo "se acalmou", mas "há uma preocupação crescente (...) com a questão do tráfico de pessoas".

Em Nijni Vorota, Marieta espera que a situação permaneça calma e diz não ter a intenção de ir para o exílio. Mas, se as forças russas se aproximarem, ela não sabe o que fará com as crianças. "É melhor não pensar nisso", desabafa.

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