Isolamento de artistas russos provoca debate sobre boicote cultural

O isolamento de artistas que compartilham a visão do Kremlin, ou que receberam financiamento do Estado russo, lembra medidas semelhantes adotadas durante a era do Apartheid na África do Sul, ou o movimento de boicote a Israel em solidariedade aos palestinos

À medida que a invasão russa da Ucrânia entra em sua terceira semana, artistas russos - joias de um país cuja riqueza artística também é uma fonte de poder - foram condenados ao ostracismo.

A soprano Anna Netrebko e o renomado maestro Valery Gergiev estão entre as estrelas forçadas a se afastar dos palcos mundiais que há muito dominam.

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O isolamento de artistas que compartilham a visão do Kremlin, ou que receberam financiamento do Estado russo, lembra medidas semelhantes adotadas durante a era do Apartheid na África do Sul, ou o movimento de boicote a Israel em solidariedade aos palestinos.

Jane Duncan, da Universidade de Joanesburgo, que estudou boicotes culturais como agentes de mudança política, diz que campanhas de isolamento baseadas em cultura, ou nos esportes, podem ser "muito eficazes, porque podem ter um alto impacto psicológico".

"Durante vários séculos, a Rússia se orgulhou de suas realizações intelectuais, artísticas e esportivas. Elas se tornaram parte de sua identidade e projeção de poder brando global", comentou a acadêmica em entrevista à AFP.

"Acredito que há muita dissensão na Rússia sobre a invasão da Ucrânia, e o boicote cultural pode intensificá-la", acrescentou.

Duncan adverte, porém, que um "boicote cultural geral" pode prejudicar artistas críticos ao regime.

No início dos anos 1980 na África do Sul, por exemplo, surgiu uma forma de "dupla censura", onde tanto os artistas próximos ao regime quanto os "de movimentos de libertação" eram evitados.

Emilia Kabakov, uma artista multidisciplinar ucraniana que há décadas trabalha com seu marido, Ilya, em Nova York, faz um alerta sobre a rejeição de artistas simplesmente por sua nacionalidade.

"Sei que os artistas russos estão tendo problemas agora", disse à AFP essa mulher nascida na cidade soviética de Dnipropetrovsk há 76 anos.

Ela se refere, sobretudo, aos que vivem e trabalham no exterior: "Alguém parou para pensar por que vivem e trabalham no exterior? Porque não podem viver na Rússia (...) Querem uma vida normal, sem restrições".

 

A abordagem de Kabakov é a que Duncan vê como apropriada: evitar boicotes baseados apenas na nacionalidade que "poderiam levar a um lugar sombrio e difícil".

Recentemente, os responsáveis pelas maiores instituições culturais, como a Ópera Metropolitana de Nova York, a Filarmônica de Paris e outros centros europeus, especificaram que suas medidas estão concentradas em artistas que apoiam Vladimir Putin, e não em qualquer pessoa com passaporte russo.

"Se alguém é uma arma do Estado, provavelmente não trabalharia com a Filarmônica de Nova York", disse sua diretora, Deborah Borda, à AFP.

"Há uma linha muito clara", diz a ministra francesa da Cultura, Roselyne Bachelot. "Não queremos ver representantes de instituições russas, ou artistas que apoiam claramente Vladimir Putin", frisou.

Em alguns casos, porém, a linha é turva. A Ópera da Polônia cancelou a produção da ópera Boris Gudunov, de Modesto Mussorgsky, e a Filarmônica de Zagreb suspendeu duas apresentações das composições de Tchaikovsky.

Fiodor Dostoyevsky liderou a tendência quando a Universidade de Milão tentou adiar um seminário sobre seu romance "Crime e Castigo". O escritor russo passou quatro anos em um campo de trabalho na Sibéria, depois de ler livros proibidos na Rússia czarista. Pressionada pelas redes sociais, a universidade teve de recuar.

 

Quando se trata da responsabilidade política dos artistas contemporâneos, Duncan diz que "basta produzi-lo e expô-lo".

"Também temos de evitar colocar os artistas no limite de ter de fazer pronunciamentos políticos, quando eles podem não se sentir confortáveis com isso", afirma.

Pressionado a se pronunciar sobre a guerra de Putin na Ucrânia, o maestro russo Tugan Sokhiev deixou seus cargos no Bolshoi e na orquestra de Toulouse há alguns dias.

Em um comunicado, Sokhiev disse que "sempre serei contra qualquer conflito de qualquer tipo", mas que se sentiu "confrontado com a impossibilidade de escolher entre meus queridos músicos russos e franceses". Decidiu, então, demitir-se de ambos.

Não sem antes denunciar que tanto ele quanto seus colegas são "vítimas" da "cultura do cancelamento" e que "os músicos são embaixadores da paz".

"Em vez de usar nós e nossa música para unir nações e pessoas, eles nos dividiram e isolaram", lamentou.

 

mdo/af/yow/mr/tt

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