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Revista íntima em presídios expõe visitantes a humilhações

14:05 | Abr. 17, 2014
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Em quase todo o Brasil, pessoas que visitam um parente preso são obrigadas a ficar nuas e se agachar diante de agentes penitenciários. "Essa violência se volta principalmente contra as mulheres", afirma promotor. "Tiro o que tiver. A agente do presídio manda agachar três vezes. E ainda tem que fazer força para ver se cai alguma coisa." Ana Cristina Fonseca (*), de 55 anos, viaja quase que semanalmente 500 quilômetros para poder ver o filho, que está preso em São Paulo. E antes de toda a visita tem de passar pela revista íntima. Homens, mulheres e crianças são obrigados a ficar nus e fazer uma série de agachamentos em frente aos agentes penitenciários. Ela não quer que a neta de 5 anos passe por essa humilhação, por isso, a menina não vê o pai desde que ele foi preso. "Vi uma senhora de idade com problemas na coluna que não conseguiu agachar. Ela saiu chorando porque não pôde ver o filho, relembra Ana Cristina. O procedimento chamado por organizações de direitos humanos de revista vexatória é proibido em apenas sete estados brasileiros: Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás e Paraíba. Nos demais, é obrigatório e quem não aceita se submeter não pode entrar na unidade prisional. "O mais difícil é o medo que a gente passa desde o começo da fila até chegar às últimas grades da prisão, antes de vermos nossos parentes", desabafa Maria dos Santos (*), de 68 anos, que por um ano e meio teve que fazer semanalmente a série de agachamentos para poder ver o filho. Em algumas unidades do Paraná, as crianças são obrigadas a ficar sem roupa desde os primeiros meses de vida, e as mulheres se agacham três vezes de frente e três vezes de costas. Mas, em todo o país, a regra não vale, por exemplo, para advogados e parlamentares, que passam apenas por um aparelho detector de metais. "A legislação faz menção às revistas, mas, em nenhum momento, oferece a possibilidade de se criar situações vexatórias, como o desnudamento e o agachamento", argumenta Patrick Cacicedo, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo. Dos cerca de 350 mil visitantes cadastrados pela Secretaria da Administração Penitenciária do estado, 66% são mulheres adultas e 12%, crianças. Para o promotor público de Goiás Haroldo Caetano, fica evidenciada uma questão de gênero. "Essa violência se volta principalmente contra a mulher, o que é algo abominável. É uma violência institucionalizada", diz. Medida ineficiente Mulheres que choram, tentam cobrir o corpo ou reclamam do procedimento podem ser punidas com o impedimento da visita. Em 2011, uma diarista de 50 anos que alegou não conseguir se agachar tantas vezes durante uma revista num presídio de São Paulo foi proibida de visitar o filho por 360 dias. O processo foi obtido pela ONG Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). De acordo com a Secretaria da Administração Penintenciária de São Paulo, foram realizadas em 2012 cerca de 3,5 milhões de revistas, mas em apenas 0,02% dos casos houve apreensão de drogas ou celulares. Os dados foram obtidos pela Defensoria Pública por meio da Lei de Acesso à Informação. A percentagem de apreensões de objetos encontrados em partes íntimas é ainda menor. "Esse ato é uma violência sexual e é entendido por essas mulheres como um estupro. E isso é feito em nome de 0,02% das situações", diz Raquel da Cruz Lima, pesquisadora do ITTC. "Fica claro que a revista íntima não se mostra eficiente para o seu objetivo", avalia Cacicedo. Segundo dados obtidos pela DW Brasil, das 156 unidades prisionais do estado de São Paulo, 18% não registraram nenhum caso de apreensão entre os anos de 2010 e 2013. O levantamento levou em conta os meses de fevereiro, março e abril. O relatório completo elaborado pela Rede Justiça Criminal será divulgado no final do mês, quando também será lançada a campanha "Pelo Fim da Revista Vexatória". Violações Em São Paulo, o Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais diz que "os visitantes devem ser tratados com humanidade e dignidade". Para Cacicedo, no entanto, a revista íntima é o reflexo de como o Estado trata os presos e seus familiares e os submete a uma série de ilegalidades. "A revista vexatória é feita de forma a afastar as pessoas daquele ambiente de ilegalidade, para que não vejam e não denunciem o que acontece por lá", opina o defensor público. "É para afastar a comunidade das prisões. Quem não é familiar de preso não passa por essa humilhação." A Defensoria de São Paulo trabalha na divulgação de uma cartilha informativa sobre a ilegalidade da prática e orienta os visitantes a entrar com ações de indenização contra o Estado. Um habeas corpus coletivo movido por familiares de presos na região de Taubaté, no interior de São Paulo, está no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e outros processos estão em fase de andamento. O STJ já considerou ilegal a revista íntima e concedeu indenização a uma visitante. "A procura ainda tem sido tímida, porque os parentes têm medo de retaliações. Por isso, nós apostamos na informação", explica Cacicedo. Um projeto de lei da senadora Ana Rita (PT/ES) propõe a proibição dessa prática. Entidades pressionam o Senado para acelerar a tramitação do PL 480/2013. Abusos também na Fundação Casa Cerca de 10 mil internos da Fundação Casa cumprem medidas privativas de liberdade. Os adolescentes são submetidos a revistas íntimas em todas as movimentações internas. "É um processo de domesticação do corpo", diz Marcelo Carneiro Novaes, defensor público de São Paulo. Os jovens ficam nus e também devem se agachar de frente e de costas na presença dos agentes socioeducativos. O defensor já presenciou até 12 revistas realizadas em apenas um dia numa unidade de São Paulo. Nem no Regime Disciplinar Diferenciado, aplicado a líderes de facções criminosas, existe esse rigor. "É um procedimento absolutamente desnecessário." A Corte Europeia de Direitos Humanos condenou a Holanda por aplicar esse tipo de revista. A Argentina já foi condenada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos por submeter mulheres e crianças a esse tratamento. Estados Unidos e Colômbia também proíbem a prática. Revista humanizada Desde julho de 2012, os familiares de presos de Goiás não precisam mais passar pela revista vexatória. Com a chamada "revista humanizada", os visitantes passam apenas pelo detector de metais e, quando necessário, por uma revista manual. A nudez é hoje proibida nos presídios. No passado, chegaram a ser colocados espelhos sobre os quais as mulheres deveriam se agachar. Em 2010, o Ministério Público do Estado produziu o vídeo "Revista vexatória visitando uma prisão brasileira". A mulher de um preso permitiu ser filmada tirando a roupa e fazendo os agachamentos durante a revista, o que provocou grande comoção. "As mulheres tinham o procedimento como normal. A condição de submissão à essa indignidade era tamanha que os visitantes não viam ilegalidade e não questionavam a prática", diz o promotor Haroldo Caetano, que levou o assunto para discussão pública. Para ele, não existe a necessidade de utilização de scanners corporais, que começaram a ser implantados em algumas unidades do país em 2009. "Me preocupa o fato de condicionar o respeito às mulheres à aquisição de aparelhos que são caros e estão longe de ser distribuídos a todos os presídios do país. A revista semelhante a que se faz em aeroportos é eficiente." Para ele, o preconceito também é uma faceta da revista vexatória. "É uma maneira de demonstração de poder em relação ao pobre que está no presídio e ao que faz as visitas", comenta. O problema do ingresso de armas, celulares e drogas nos presídios "não passa necessariamente pela vagina das visitantes", afirma Caetano. "Existem outros caminhos e nós sabemos quais são: fundamentalmente, o da corrupção que impera no sistema prisional." (*) Os nomes das personagens foram alterados para preservar a identidade.

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