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Histórias de mulheres que conseguiram romper o ciclo da violência doméstica

Nesta quinta-feira, 10, se encerram os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, promovidos pela ONU Mulheres para denunciar as formas diversas de violência contra meninas e mulheres

Uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil e 65% delas são negras, de acordo com o Atlas da Violência 2020. O Ceará registrou uma média de 10,2 mulheres assassinadas a cada 100 mil habitantes e 90% delas eram pretas ou pardas. Os dados do Atlas 2020 são referentes ao ano de 2018. 

Esta quinta-feira, 10 de dezembro, é o Dia Internacional dos Direitos Humanos, data que marca o fim dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, promovido pela ONU Mulheres. Internacionalmente, são 16 dias, a partir de 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. No Brasil, são 21 dias, a partir do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, para considerar a condição específica da mulher negra. O objetivo da data é conscientizar a população sobre os diferentes tipos de violência contra meninas e mulheres e combater as situações.

Para marcar a data, O POVO conta a história de duas mulheres que viveram situações de violência doméstica, denunciaram — e veem os agressores sem serem punidos.

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Torturada pelo namorado

No dia 20 de setembro a estudante de psicologia Débora Silva viveu as piores horas de sua vida. Ela foi torturada pelo ex-namorado por, pelo menos, três horas, enquanto teve o celular confiscado pelo torturador.

"Eu passei seis meses morando com ele e a gente já tinha terminado havia dois meses. Num sábado, dormi na casa dele e no domingo íamos fazer um churrasco na rua. Ele deu uma saída pra comprar umas cervejas e uma moça perguntou por ele e eu não conhecia ela. Quando ele voltou eu perguntei quem era essa moça e bastou. Eu recebia socos, chutes e ele dizia a todo momento que ia me matar. Ele me bateu com uma corrente que ele usava no pescoço, com falcão, eu me urinei e ele me obrigou a tomar banho pra me bater mais depois."

Ela conseguiu escapar porque ele ficou com raiva por causa da corrente quebrada por ele próprio. Disse então que ela devia R$ 500 a ele. "Ele me obrigou a ligar pra uns amigos e garantir que eu ia conseguir esse dinheiro pra ele. Meus amigos notaram que as coisas não estavam normais e trouxeram minha mãe junto com eles. Minha mãe desceu do carro já gritando e me vendo toda rasgada, aí ele fugiu."

Débora já era estudante de Psicologia nessa época e conta que já havia se debruçado sobre o assunto, pois tinha vivido relacionamento abusivo no passado. "Foi algo totalmente inesperado, porque ele nunca teve crise de ciúmes, nem me proibiu de nada, muito pelo contrário. Então eu jamais esperava isso, tanto que ele me chamou pra ir pra casa dele depois que terminamos e eu fui, pois não via perigo."

No dia 20 de dezembro, o episódio completa três meses. Tempo desde o qual o oficial de justiça não encontra o agressor. Segundo Débora, ele continua morando na Cidade 2000, mesmo bairro onde ocorreram os fatos. "Assim que eu consegui sair da casa dele, dei parte na Delegacia da Mulher e consegui uma medida protetiva, porém essa medida não funciona pois não encontram ele pra assinar o papel e eu sei que ele continua morando no mesmo bairro."

Reincidência e negligência

Leiliana Sousa viveu por oito anos com seu agressor, juntos das duas filhas. Ele também deixou de herança hematomas e o medo constante de sua presença. A vendedora de salgados perdeu a conta de quantas vezes já registrou boletim de ocorrência contra ele, que chegou a ser preso pela Lei Maria da Penha. De dentro da cadeia, com ajuda do irmão, ele a mantinha em cárcere privado. Dentre as agressões mais marcantes, Leiliana conta da ocasião que ele, depois de consumir rivotril com cachaça (popularmente conhecido como aranha), amassou uma panela em episódio que quase desfigurou o rosto dela. Aos 30 anos, Leiliana relembra que ainda era muito jovem quando começou o relacionamento, aos 16.

Além da violência física, a violência psicológica era um instrumento comum sobre o modo como seu agressor a tratava, bem como a violência patrimonial, que se configura como a dependência financeira da vítima, mantida pelo seu agressor. Leiliana não obteve proteção efetiva por parte do Estado e também não conseguiu apoio com a família. Antes de engravidar de sua filha mais velha, hoje com 13 anos, ela resolveu parar o uso da maconha, do crack, da cocaína e do álcool. Porém, o agressor continuou a usar de forma cada vez mais frequente.

"Uma vez eu estava com medida protetiva e saí pra ir ao supermercado. Nesse tempo eu já tinha saído da casa dele, e eu sabia que ele estava pelo bairro. Liguei para a Polícia e informei o ocorrido. E o policial ignorou a medida protetiva que eu tinha em mãos. Ele me disse que, se eu fosse agredida de novo, eu ligasse novamente."

Quando a denúncia chega à delegacia, comum ou especializada, cabe ao delegado/a verificar em qual tipo de violência se enquadra aquela ocorrência. Casos relatados por Leiliana configuram violência institucional. Como quando, na terceira vez que fez registrar boletim de ocorrência contra seu agressor e, na época, marido, ouviu o policial que a atendeu dizer que ela gostava de apanhar. Denise Aguiar, secretária executiva de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo do Estado, afirma que deve haver investigação desses casos. "O Estado deve punir esses agentes." Ela acrescenta que a Secretaria, em parceria com SSPDS e a vice-governadoria, lançarão um projeto chamado Sala Lilás, onde serão criados espaços para acolher mulheres em delegacias comuns e formação para agentes de segurança pública. O projeto tem previsão de lançamento para o começo de 2021.

Leiliana conseguiu sair dessa relação abusiva quando, com uma medida protetiva, viajou para Brasília com as duas filhas. Hoje, ela é casada com um brasiliense. Seu agressor continua solto e está em um novo relacionamento, onde sua atual esposa também é vítima de violência, conforme relatou Leiliana.

Subnotificação

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do Ceará sobre violência doméstica, de janeiro a outubro de 2020, foram registrados 15.282 casos, 19% a menos do que no ano passado, quando, no mesmo período, foram registradas 18.877 ocorrências. Além disso, durante a pandemia, o Ministério Público do Ceará recebeu 110 manifestações pela ouvidoria-geral sobre violência contra a mulher. Os números podem revelar um cenário de subnotificação dos casos durante a pandemia.

Segundo Denise Aguiar, secretária executiva de Políticas Públicas para as Mulheres, mulheres tiveram mais dificuldades de fazer denúncias, ir até as delegacias, procurar os serviços para buscar apoio. "A pandemia aumentou a questão da reclusão da mulher dentro do processo do próprio conflito e acaba ficando desestimulada, com medo ou receio de denunciar."

A delegacia até abrigou, em casos necessários, mulheres que estavam em situação de risco de feminicídio, na Capital e Interior. "Porém, nem sempre a rede municipal acionou a rede estadual, o que às vezes dificulta também a ação do Estado em ter uma resposta mais efetiva contra o feminicídio", disse Denise. O número de mulheres abrigadas por causa de violência doméstica não foi revelado, segundo Denise, por segurança.

Percepção da violência

O relatório da pesquisa de percepção do Brasileiro sobre a violência doméstica durante a pandemia, do Instituto Patrícia Galvão (IPG), mostrou que 86% das mulheres entrevistadas e 84% dos homens entrevistados consideram que violência doméstica é o crime que mais preocupa as brasileiras e 75% das pessoas que responderam conhecem alguém que já sofreu violência doméstica oriunda de relações afetivas. Já sofreram a situação 37% das pessoas que responderam. Entre as que já sofreram violência, 57% delas são separadas ou viúvas, 33% casadas e 35% solteiras.

Denúncias

As denúncias podem ser realizadas através do 180, ou na Delegacia Especializada de Defesa da Mulher pelo número (85) 3101 2495. A Casa da Mulher Brasileira também recebe atendimentos e possui postos da Defensoria Pública, Do MPCE e do CRAS. O telefone é (85) 3108 2999.

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