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Cearense é primeiro jurado brasileiro de um dos maiores concursos de dança contemporânea da Ásia

Bailarino e coreógrafo, Anderson Carvalho, 32 anos, enfrentou a pobreza na infância e hoje inspira com sua história
13:18 | Set. 23, 2020
Autor Lais Oliveira
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Lais Oliveira Estagiária do O POVO Online
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Tipo Notícia

Se por alguma peripécia do tempo alguém voltasse anos atrás para contar a Anderson Carvalho, 32 anos, que ele seria o primeiro brasileiro a julgar um dos maiores concursos de dança contemporânea da Ásia, ele provavelmente duvidaria. Nascido e criado na periferia de Fortaleza, no bairro Bom Jardim, o bailarino e coreógrafo encontrou na arte o caminho para burlar os entraves sociais que a vida lhe colocou.

“É mais que uma vitória, é um grito ao mundo. É não se calar e abrir caminhos para outros artistas que vêm da mesma realidade que eu vim”, define Anderson sobre ser o primeiro jurado do Brasil convidado para o Korea International Contemporary Dance Competition 2020 em Seul, na Coreia do Sul. 

A competição, reconhecida como uma das mais importantes do continente asiático, ocorre nos dias 23, 24 e 25 de setembro e as audições serão on-line para pessoas de fora da Ásia, devido à pandemia da Covid-19, e presenciais para os candidatos residentes na Coreia do Sul.

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O cearense será o jurado principal do evento, responsável por “dar a palavra final” sobre as apresentações e por fechar a competição com um breve discurso.

Há oito anos, Anderson mora em Amsterdã, na Holanda, onde mantém sua própria empresa de arte chamada Anderson Carvalho Dance & Choreography, que “cria pontes entre países e jovens artistas de realidades distintas”, como ele ressalta.

Único da família a se graduar, o coreógrafo conta da felicidade da mãe, Marluce do Nascimento, em sua formatura do Mestrado em Artes com especialização em Coreografia pelas universidades Codarts University of Arts e Fontys University of Applied Science, que estão entre as melhores na Europa. “Na cerimônia ela não parava de chorar, mesmo sem entender nada. Foi muito especial, ela viajou pela primeira vez de avião e sozinha”, relata.

Antes disso, Anderson ainda estudou dança por três anos na Cidade do Cabo, África do Sul. Atualmente com dupla nacionalidade, brasileira e holandesa, o coreógrafo trabalha entre Brasil, Amsterdã e Cidade do Cabo.

Sem esquecer suas origens, ele contribui com projetos sociais e acadêmicos no Ceará. A paixão pela arte começou cedo e, segundo Anderson, funcionou como uma forma de afastá-lo da realidade de vulnerabilidade social e pobreza.

“Às vezes, não tendo o que comer em casa, eu ia para o Circo Escola Bom Jardim, onde eu sabia que lá me garantia uma refeição. Comecei tudo fazendo aulas de palhaço no Circo Escola”, relembra.

A dança cativou Anderson ainda aos 14 anos, quando ele descobriu a Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca). “Ali encontrei a única oportunidade de vencer todos os obstáculos que a sociedade me apresentava: negro, pobre, favelado e gay”, conta. Entre os 15 e os 16 anos, ele começou a dançar ao mesmo tempo que já ministrava aulas de teatro.

Quando ganhou uma bolsa de estudos de dança pela Edisca para ir à Bélgica, Anderson vislumbrou a oportunidade de mudar seu futuro. “Infelizmente não aconteceu. Porém, eu estava juntando dinheiro, então resolvi visitar a Holanda e lá eu fiz uma audição para um projeto de dança e passei. A partir daí eu passei a buscar estabilidade, amigos me ajudaram”, comenta.

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Dos obstáculos variados que enfrentou na jornada entre Brasil e Europa, Anderson considera o preconceito a maior delas. “Quebrar o paradigma de que a dança era apenas um hobby, de que homem não dança, de que se precisa de um certo corpo, de uma certa altura para ser bailarino. Me lembrava dos meus amigos e alunos que moravam na favela, para só assim recarregar e ganhar forças para prosseguir”.

Para o futuro, o coreógrafo cearense planeja continuar inspirando outros jovens com sua história e não pretende parar pela Europa, África ou Ásia. “Cruzar os quatro cantos do mundo e dizer que é possível!”, projeta.


Confira a entrevista completa com Anderson Carvalho:

O POVO - Como começou sua história com a dança?

Anderson Carvalho - Eu comecei a me envolver com a arte desde cedo, primeiro como uma fuga da realidade em que eu me encontrava: morador da comunidade carente do Bom Jardim (em Fortaleza). Era uma fuga da criminalidade, e até mesmo da pobreza. Às vezes não tendo o que comer em casa, eu ia para o Circo Escola Bom Jardim, onde eu sabia que lá me garantia uma refeição. Iniciei tudo fazendo aulas de palhaço no Circo Escola. Depois, aos 14 anos descobri a dança, descobri a Edisca, a ponte para a realização de sonhos.

Comecei a dançar dos 15 para os 16 anos, já um pouco tarde, mas vinha de uma trajetória no teatro. Fazia teatro na escola e também já estava ministrando aulas de teatro aos 16 anos. Mas me encantei pela dança e pedi para dançar. Ali encontrei a única oportunidade de vencer todos os obstáculos que a sociedade me apresentava: negro, pobre, favelado e gay.

De início, ganhei uma bolsa de estudos pela Edisca para estudar dança na Bélgica, mas infelizmente não aconteceu. Porém, eu estava juntando dinheiro, então resolvi visitar a Holanda e lá eu fiz uma audição para um projeto de dança de alguns meses, e passei. A partir daí, passei a buscar estabilidade, amigos me ajudaram.

OP - Para você, o que significa ser o primeiro jurado brasileiro convidado para o Korea International Contemporary Dance Competition 2020?

Anderson - Ser o primeiro brasileiro a julgar um dos maiores eventos de competição contemporânea de dança na Ásia é mais que uma vitória, é um grito ao mundo. É não se calar e abrir caminhos para outros artistas que vêm da mesma realidade que eu vim. No momento não se pode viajar para a Ásia por conta da pandemia de Covid-19, mas eu recebi uma carta especial dizendo da importância da minha presença neste evento. As audições serão presenciais para os moradores da Ásia e on-line para os estrangeiros. Eu estarei fechando o evento com uma fala de quatro a cinco minutos.

OP - Quais as maiores dificuldades que você encontrou nesse caminho?

Anderson - Desde o Brasil até a minha chegada na Europa as minhas maiores dificuldades foram quebrar o paradigma de que a dança era apenas um hobby, de que homem não dança, de que se precisa de um certo corpo, de uma certa altura para ser bailarino. De que precisa de uma certa educação para ser artista. Eu me vi nadando contra uma onda, mas me agarrava nos meus sonhos, e nos sonhos de todos que acreditavam em mim. Me lembrava dos meus amigos e alunos que moravam na favela, para só assim recarregar e ganhar forças para prosseguir.

Na Europa eu trabalhei no McDonald’s, trabalhei como camareiro... limpava 28 quartos por dias no hotel em que hoje eu me hospedo, o Hilton. Quando eu saí do Brasil, meu inglês era super básico. No início foi uma barreira pois tive que aprender no dia a dia, e eu estava aprendendo dois idiomas ao mesmo tempo: inglês e holandês. Inclusive tive que fazer testes de inglês para estudar na universidade, e teste de holandês para ganhar a nacionalidade. Hoje eu falo inglês, holandês, espanhol e africano intermediário.

Hoje eu tenho dupla nacionalidade, brasileira e holandesa, estudei dança na universidade da Cidade do Cabo (África do Sul), morei lá por quatro anos, onde também trabalhei com com projeto social. Fiz meu mestrado em Artes com especialização em Coreografia, me tornando mestre em coreografia por duas universidade reconhecidas como entre as melhores na Europa, Codarts University of Arts e Fontys University of Applied Science.

OP - Em meio a tantos obstáculos, qual era a sua maior motivação?

Anderson - A minha motivação durante essa jornada foi o desejo de inspirar, de criar portas, de quebrar muralhas e mostrar aos meus irmãos - todos aqueles que estão nesta jornada, que sonham em um mundo melhor - um mundo de possibilidades e oportunidades.

Todos os dias eu me via na responsabilidade de não falhar porque comigo eu estava carregando sonhos, carregando vidas. Eu me lembrava dos meu amigos que foram mortos pelo sistema, pela criminalidade, que perderam a vida pelo crime. Eu me agarrei a tudo e a todos nessa jornada.

Hoje, com orgulho e como um exemplo de inspiração, eu quero dizer a todos que é possível! A sociedade vai te dizer todos os dias que não é. Mas não é possível até você tentar. A sociedade vai ter dizer que os degraus são maiores que os teus sonhos, mas o meu desejo de vencer era maior de que todos os sonhos e degraus.

OP - Como é sua rotina de trabalho hoje?

Anderson - Trabalho entre Brasil, Amsterdã e Cidade do Cabo. Sou coreógrafo no projeto social Dance For All, na África do Sul, e fui por quatro anos diretor artístico da companhia Corpo Mudança, do Instituto Katiana Pena (no Bom Jardim, em Fortaleza). Atualmente, tenho a minha própria empresa de arte na Holanda, chamada Anderson Carvalho Dance & Choreography, que cria pontes entre países e jovens artistas de realidade distintas.

Durante o lockdown (isolamento rígido adotado por causa da pandemia do novo coronavírus neste ano), escolhi trabalhar com os bailarinos do Bom Jardim. Tudo aconteceu por celular e eu mandava as instruções sobre como e o que gravar com o celular. Os meninos me mandavam o material e a partir do material que eu recebia, criava uma coreografia virtual. A música foi também criada através de instruções dadas por mim, tudo por WhatsApp. O vídeo foi selecionado para ser publicado nas plataformas social de um festival em Kigali, capital de Ruanda (África), e se chama “Mães e Filhos”.

Todos os anos eu vou ao Brasil dar workshop, inclusive ano passado levei um dos meus trabalhos que criei na Holanda para ser apresentado no Dragão do Mar. O espetáculo falava da minha vida na favela. Eu estava colaborando por quatro anos com o Instituto Katiana Pena. Hoje, um dos meus trabalhos de vídeo está sendo estudado por alunos da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, e estou trabalhando à distância com eles, criando um vídeo arte sobre políticas do corpo. A universidade se interessou de usar um dos meus trabalhos, chamado “O Salto”, que fala sobre a minha trajetória da favela até a Europa e se tornou material de estudo.

OP - Quais são seus planos para o futuro?

Anderson - Meus planos são continuar nessa jornada, levando ao público meus trabalhos de arte, trabalhos que questionam, que te fazem pensar sobre o mundo e a realidade em que nos encontramos. Continuar inspirando, movendo muralhas, formando legiões, e criando oportunidades através da minha arte. Cruzar os quatro cantos do mundo e dizer que é possível!


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