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Crônica: seis meses após a queda do edifício Andréa, a ausência ainda dói aos olhos

É de cedo que aprendemos a não olhar diretamente ao sol. A dor já ensina. Mas, crianças que somos, incorremos no erro até aprendermos a virar a mirada. Ou pelo menos sabemos que é necessário bloquear a visão para não ferir a retina.

Entre a minha varanda e o sol havia um prédio. Que há seis meses não existe mais.

Tal qual o edifício onde vivo, era uma construção baixa e antiga. Menos baixa e mais antiga que ao meu, que, para minha sorte, goza de boa saúde.

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Passados esses seis meses e minha impressão é que o mundo enlouqueceu de vez. Aliás, já era a minha impressão desde antes de eu passar 24 horas por dia preso dentro de um dos prédios que sobreviveu, a dois quarteirões daquele que pereceu junto a nove moradores que eu um dia devo ter visto andando pelas esquinas do bairro.

O mundo avança rumo à ruína e, da varanda da minha casa — sem o bloqueio com que o Edifício Andréa me acolhia — consigo a límpida leitura apocalíptica, meio que um retrato da minha alma conformadamente pessimista.

Ontem dobrei a esquina daquele não prédio pela primeira vez desde o isolamento social. Ali, na rua Tomás Acioli, lembrei com irritação da falta de calçada, não sanada seis meses após a tragédia. E, com isso, sem nem saber da efeméride, eu me vi transportado para o dia em que acordei com um estrondo e com a certeza (graças a Deus errada) de que ninguém teria sobrevivido àquilo.

Sobreviveram por sorte, milagre, trabalho dos bombeiros. Mas morreram nove, cujos nomes conhecemos naqueles dias de cobertura. Eu não conhecia nenhuma das pessoas, mas um nome doeu mais em mim. Dona Penha, que minha avó conhecia, que era mãe de um antigo amigo dos meus irmãos, que há anos não vejo.

Dona Penha era também mãe de Gustava, agora ex-vizinha minha. Devo ter trocado alguns "bons dias" com ela, mas é alguém por quem nutri a admiração muda de quem viu, dia ou outro, a linda família dela. Era um respiro progressista no conservadorismo do meu prédio de elites. Um mês após o desastre, compreensivelmente, ela deixou de ser minha vizinha e nunca pude declarar meu respeito, minhas condolências e minha admiração por aquela mulher. Escrevo, portanto, neste então.

No Dionísio Torres, a Estância, o Edifício Andréa é muito vivo. Mais na ausência do que nos 40 e tantos anos de presença. Era parte do horizonte de prédios de um tal bairro rico, onde crianças não brincam nas ruas e muita gente não sabe os nomes dos vizinhos. Talvez por isso as pessoas daqui resolvam, estupidamente, olhar para o sol.

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