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Deixem o barco naufragar

A professora de Direito da UFC Juliana Diniz comenta sobre a obra de Sérvulo Esmeraldo
14:59 | Mar. 06, 2018
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Já sentei nas areias do aterrinho algumas vezes para ver o mar e dar conta de todas as coisas que pertencem àquela faixa de praia: a baía de água calma, o marolar miúdo, ensaiando uma arrebentação, o barquinho do Sérvulo na linha do horizonte, dançando para lá e para cá. A carícia do vento na silhueta de metal ajudava o barquinho a fugir do peso da viga de concreto onde está encravado, como se a brisa desculpasse o artista por ter fincado no chão uma forma que foi feita para partir. O barco, mesmo fincado, navegava. 

 

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Parecia triste há algum tempo, mesmo desconsolado. As chuvas de fevereiro sossegam a energia do vento, que deixa de soprar com a violência das rajadas de setembro e agosto. Sua dança perdera o vigor das longas travessias, passava manhãs inteiras ancorado, acorrentado e sozinho.

 

[SAIBAMAIS]Resolveu naufragar

 

Combinou com Iemanjá que em sua próxima ressaca iria à pique, aproveitando a fúria das ondas de alguns metros como chicotadas enraivecidas de longos cabelos. Tudo se deu sob uma chuva enevoada que turvou a visão do horizonte, Iansã também empenhada em ajudar o barquinho a submergir sem testemunha.

 

Sumira, mas não para longe, estava logo ali abaixo, a quatro metros e meio de mar. Por alguns dias, imaginou que conquistara, com o seu desaparecimento, uma existência eterna. Quem sentasse na faixa de praia e desse com o vazio no horizonte, poderia reencontrar o barquinho na memória de alguma manhã feliz, quando ele ainda navegava indeciso sobre que direção seguir.

 

Até que um homem de bom coração e muito fôlego resolveu encontrá-lo, para o bem das viúvas enciumadas pelos encantos das sereias. Pesado de melancolia, resistiu em voltar à superfície. Foi preciso muitos braços. Pedia aos bombeiros e à polícia, inconformado, que o deixassem em paz, esquecido no fundo. É preciso desaparecer, o barquinho repetia, quando já ia rebocado. Só desaparecendo permanece intocada a beleza das coisas que, para continuar belas, precisam naufragar.

 

Juliana Diniz 

 

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