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Crônica de uma noite de terror

Suiany Moraes comenta chacina no bairro Benfica. Ela é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), e faz pesquisa de pós-graduação em sociologia sobre o bairro
18:44 | Mar. 10, 2018
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Tipo Notícia
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Mais uma chacina em Fortaleza, a quarta do ano e essa com um pelo menos sete mortos e sete feridos. O cenário? Um bairro universitário e boêmio, encontro natural de diferentes tribos, local de lazer e sociabilidades diversas. Era uma sexta-feira à noite e o diferencial desta era o intenso movimento proveniente de uma calourada em defesa dos direitos das mulheres realizada na Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Depois da calourada, muitos jovens ainda se amontoavam nas duas praças do bairro (Gentilândia e João Gentil), indo e vindo em um circuito de lazer que abarca todo o entorno, composto por diversos bares e restaurantes. Eu, particularmente, acho incrível isso: pessoas resistindo e ocupando as praças e as ruas em um bairro/cidade apavorada pela insegurança e intranquilidade. Mas como ocupar as ruas diante dessa realidade que nos avassa?
 
 
Eram por volta de 23h30min dessa noite quente e abafada e tudo transcorria dentro da normalidade: pessoas bebendo, conversando, comendo, dançando, música tocando, vozes altas, risadas... e um tiro. E depois veio outro, outro, mais outro e uma sequência de cerca de 30 tiros. Depois do primeiro, tudo foi muito rápido, rápido como um piscar de olhos em câmera lenta: correria, mesas e cadeiras no chão, copos e garrafas quebrando, pessoas em pânico e nenhum agente de segurança pública no local. Fato interessante de se observar: era uma sexta, com festa, bairro lotado, mas nem os dois policiais que costumam fazer a ronda a pé na praça se encontravam no local. Só vimos a primeira viatura chegar cerca de cinco minutos após o fim dos tiros.

[FOTO2]Após esse momento de total desespero, foi o momento de achar os amigos em meio ao caos instaurado. Enquanto muitas pessoas apenas gritavam nomes aleatórios, como quem pergunta em voz alta se fulano está aí, outros percorriam os corpos (três no total) buscando não ver ali o rosto do seu amigo/companheiro/colega. Os corpos violentados estavam banhados de sangue e cada um em uma posição diferente, ao redor deles muitos curiosos, mas também amigos agarrados aos corpos sem conseguir processar tudo aquilo que estava acontecendo.
 
[SAIBAMAIS]Em paralelo, pessoas tentavam socorrer os feridos (um rapaz e uma moça) que se desesperavam no chão enquanto muito sangue se avolumava ao redor deles. No entorno o cenário de guerra era visível, triste e assustador. Um dos bares estava com suas portas completamente destruídas devida a intensa correria de pessoas buscando fugir dos tiros.

Quase que simultaneamente, outros dois locais do bairro foram atacados a tiros: a sede da torcida organizada (TUF) e um rua no entorno. Nesses dois ataques houve outras três mortes. Mais de 50 tiros foram disparados em uma só noite no bairro, que, logo em seguida, como se tivesse chorando pelas mortes, foi banhado por uma chuva torrencial.

[FOTO3]Nessa chacina mais uma vez a grande protagonista foi a arma de fogo sob o signo da disputa de facções. E, nessa leva, vão embora jovens vítimas (dessa vez elas tinham entre 21 e 33 anos) de uma política de segurança pública que não chega na ponta, que não protege nem evita. Até quando seguiremos nessa disputa cruel e injusta nas ruas? Uma das formas de se combater a violência é ocupar os espaços públicos, mas como diante do atual cenário? Nos trancaremos em casa? Viraremos reféns dos nossos próprios medos ou da realidade?

O problema atual da violência urbana é algo complexo que vai muito além das drogas sendo comercializadas. Há em curso uma nova lógica balizada por uma sociabilidade violenta que normatiza a violência como ferramenta de resolução de conflitos. É preciso aprofundar o debate de uma cultura de paz, além de ter coragem para encarar de frente as desigualdades sociais e o debate da descriminalização das drogas como elementos chaves para combater esse contexto de medo e insegurança; além da urgente necessidade de uma política de segurança pública inteligente e unificada, capaz de se adiantar aos fatos e efetivamente impedi-los.
 
Suiany Moraes, pesquisadora do LEV 

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