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Tem uma chacina atravessada na memória da Cidade

14:28 | Jan. 29, 2018
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(segunda-feira)

me desculpe a sinceridade, senhor cidadão.

mas dizer que vai criar uma “força-tarefa”, um grupo disso e daquilo, palavra sem sustança, é mesmo que dizer nada. porque já é tarde e já houve tempo. não há mais o tempo que houve, nunca mais, entende? há um vazio dentro das casas, das horas, das conversas, das gentes, senhor cidadão.

agora é seguir em frente, sem a melhor amiga, o companheiro; só metade.

agora é entreter a dor com o trabalho, feito um pedaço de pão pra matar uma fome inteira.

agora é arrumar as coisas do quarto do filho morto, doar os pertences e ficar, morar ali.

agora é criar os irmãos menores e crescer à força, porque de repente.

me desculpe a sinceridade, senhor cidadão.

mas dizer que foi um "fato isolado" é palavra que açoita sem piedade, sangrando tudo de novo. não foi um fato isolado, senhor cidadão. foi um grito de socorro, um atrás de muitos, fazendo uma madrugada. foi uma derradeira esperança. foi uma tentativa de se esconder da morte e até de voar sem ter como.

foi morrer sem morrer duma vez, pra quem teve que enterrar alguém que ama em dia de domingo.

e foram 14 vidas, sem contar o resto, salvou-se pouco, talvez, o choro, o lamento. e foi pra sempre.

ficou o chinelo, e o mais que se possuía aos 15, 17, 19, 21, 22, 22, 24, 25, 31, 32, 37, 38, 48, 55 anos. tudo misturado na terra batida, nas calçadas, no meio da rua, entre as Cajazeiras e o Brasil.

por estes dias, tem sido tempo de chuva. e a chuva lava o sangue do chão, mas não lava o sangue da alma, senhor cidadão. tem uma chacina atravessada na memória da cidade. não é mais uma, é outra. de igual, só tem uma pergunta: quanto vale uma pessoa?
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cada um vale quanto, senhor cidadão, sabe dizer? uma manchete de jornal? uma oração por caridade? a próxima eleição?

depende de quem mede. depende da extensão que alguém tem pra alguém.

me desculpe a sinceridade, senhor cidadão.

mas eu ainda preciso lhe dizer uma coisa, uma faca só lâmina (com licença, João Cabral de Melo Neto). essa foi um colega de plantão e de escrita quem me contou. ele foi lá e viu. já ia saindo quando uma menina franzina, que mal cabia nos 12 anos, tocou nele e pediu, antes que esquecessem:

ei, tio, anota o nome da minha mãe.

por quê? como é o nome da sua mãe?

é Mariza Mara Nascimento da Silva. ela morreu ontem aí também.

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