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Vila na Aldeota é alvo de disputa

Construído na década de 1940, local abriga pessoas que chegaram há mais de 40 anos ou herdaram casas dos primeiros donos. Entidade religiosa, que reclama propriedade da área, relata necessidade de cumprir acordo de venda
19:30 | Out. 20, 2016
Autor Amanda Araújo
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Localizada em terreno privilegiado do bairro Dionísio Torres (próximo à Aldeota), a Vila Vicentina da Estância está no meio de uma disputa. De um lado, moradores denunciam ameaças psicológicas para deixarem o local, de outro, o Conselho Central de Fortaleza da Sociedade São Vicente de Paulo questiona a propriedade e a utilização do local. O imbróglio ainda envolve uma construtora citada como compradora da área e movimentos sociais reivindicando regulamentação do espaço como Zona Especial de Interesse Social (Zeis). 

A tensão se arrasta desde 2009, quando o terreno foi vendido pela entidade da igreja, em uma gestão anterior, conforme o secretário do Conselho, Antônio Roberto Figueiredo. Construída na década de 1940 para acolher viúvas idosas carentes, a Vila hoje abriga pessoas que chegaram ao local há mais de 40 anos ou herdaram casas dos primeiros donos.

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Em um dos capítulos mais recentes, moradores contam que receberam a visita de uma corretora ofertando R$ 50 mil ou um apartamento em Maracanaú. ''A situação degringolou porque ela veio porta a porta dizendo que ‘não tinha choro nem vela’, que aceitassem porque ia ter muita poeira, máquina, todo mundo ia sair sem nada se não aceitasse", disse a aposentada Maria de Fátima Moreira de Souza, 57.

Das 42 casas localizadas no quadrilátero entre a avenida Antônio Sales e as ruas João Brígido, Tibúrcio Cavalcante e Nunes Valente, dez já foram desocupadas. Figueiredo disse que esses moradores saíram voluntariamente, mas a informação é contestada pelos outros residentes que formaram o grupo “Resistência Vila Vicentina”.

Advogada do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, Mayara Justa relata que as pessoas mais frágeis saíram ameaçadas pela autorização de demolição da Secretaria Executiva Regional II, datada de 24 de setembro de 2015. "Embora os vicentinos fossem proprietários, o fato é que o terreno foi doado para a sociedade. Não tem dinheiro que pague uma casa no coração da Aldeota, onde muitos trabalham perto".

Ela também narra informações sobre a construção de duas torres com 115 m². "Com a venda de um apartamento, já pagavam a indenização de todas as casas. Não entraram com restituição de posse, não tem título de propriedade. A moradia das pessoas é mais do que comprovada", diz.

Segundo Figueiredo, a venda de alguns imóveis da Sociedade foi decidida em assembleia por questões de sobrevivência financeira. “A Sociedade Vicente de Paulo é uma instituição privada que cuida de idosos, nossa renda vem dos aluguéis [das casas], que ali giram em torno de R$ 1.400 porque há anos não pagam a taxa de R$ 100”, explica.

O secretário do Conselho afirma que a venda da Vila Vicentina foi acertada pela administração anterior com rescisão milionária, um valor que a entidade também não pode pagar. "A doação foi para a Sociedade Vicente de Paulo, temos a escritura. Hoje, essa situação ‘estourou’ na nossa mão porque a pessoa vai ficando velha e aparece o filho, o neto. A maioria não é pobre, tem professor universitário, aposentado, carrão, celular de última geração e quer morar na Aldeota pagando R$ 100", continua.

A proposta, ainda de acordo com Figueiredo, é uma ajuda de custo de R$ 50 mil, quitação de aluguéis e serviço de mudanças para qualquer lugar do Brasil. Os apartamentos em Maracanaú, no entanto, seriam destinados apenas para os idosos, como um suporte a mais. "Nós casamos com as viúvas e temos que cuidar dos filhos. O idoso não está desamparado, o problema é que usam o idoso contra nós", completa ele.

O Escritório Frei Tito informou que ainda analisa juridicamente o caso, mas já oficiou Ministério Púbico, conselhos estaduais e municipais de proteção aos idosos, além de órgãos da Prefeitura, como a Habitafor, Seuma e Iplanfor.

A Prefeitura Municipal de Fortaleza afirma que ''o terreno é área particular regularizada e não há incidência nenhuma de Zona Especial, inslusive ZEIS''. O ofício para a demolição, conforme a gestão, não tem prazo de validade.

"Segundo o inciso II do parágrafo 1º do artigo 126 do Plano Diretor de Fortaleza, que trata das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), a área em questão não se caracteriza como tal. Quando há a incidência de ZEIS não é permitido nenhum tipo de empreendimento, a não ser aqueles de caráter de interesse social, o que não é o caso do terreno em questão", respondeu. 

A Prefeitura indicou que, conforme a lesgislação, ''são inválidas e sem eficácia como Áreas de Zona Especial de Interesse Social as áreas que, embora situadas dentro dos limites da ZEIS-1, sejam constituídas de: (Com redação dada pelo Art. 1º da Lei Complementar nº 0108 de 30 de maio de 2012, publicada em 14 de junho de 2012)
I — imóveis vazios, não utilizados pela população do assentamento irregular, desde que comprovada a regularidade da propriedade; (Com redação dada pelo Art. 1º da Lei Complementar nº 0108 de 30 de maio de 2012, publicada em 14 de junho de 2012)
II — imóveis ocupados por qualquer atividade, que não sejam utilizados pela população do assentamento irregular, desde que comprovada a regularidade da ocupação''.

Quanto ao risco de danos aos outros imóveis, devido à demolição prevista das unidades desocupadas, a Prefeitura respondeu que "o processo de demolição é de competência do proprietário do terreno e acompanhado pelo poder público municipal". 

Em nota,  a BSPAR Incorporações - citada pelos moradores como responsável pela compra - informou não estar à frente de negociações envolvendo a comunidade da Vila Vicentina da Estância.

Área
A pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB-UFC), Valéria Pinheiro, acompanha a questão e defende que a comunidade está localizada em uma ZEIS. "Fica protegida de remoção e deve ser prioridade de investimento do poder público para regularização fundiária e urbanização. O que acontece é justamente o contrário, a comunidade está sendo facilmente removida", disse.

O impasse da Vila Vicentina também influencia o preço do m² do terreno, que varia dependendo da situação legal e edificação construída. "Apesar de ser bem localizado, a construtora tem o prejuízo de aguardar o redirecionamento das famílias. Uma coisa é comprar um terreno desembaraçado, outra é programar daqui a um ano e em um prazo indeterminado", avalia o Presidente do Sindicato dos Corretores de Imóveis (Sindimóveis), Robson Bizarria.

Além disso, ele destaca que, pelo novo Plano Diretor, áreas residenciais não podem ser erguidas em avenidas. "Como está, pelo mercado atual, a negociação do m² sairia na faixa de R$ 2.800. Livre, poderia ser trabalhado por R$ 3.800 a R$ 4.200. Sendo área edificada, o valor poderia ser até R$ 6 mil”, acredita.

Moradores
Dentro das casas, o clima é de apreensão entre os moradores que sonham terminar os dias na Vila. "A gente está enraizado, ir para um canto distante não é legal", diz o mecânico José Ferreira de Queiroz, 66, conhecido como "seu Jota".

O educador físico Edson Pereira, 35, guarda na memória as lembranças de confraternização com vizinhos e a mãe, que não quer nem ouvir falar em arredar o pé dali. "Mesmo casado, eu venho aqui por causa das amizades. Compartilhamos nossa infância, adolescência, maioridade".

Maria Neusa de Morais de Oliveira, 80, que já foi manicure e cabeleireira, faz questão de mostrar a casinha onde teve as duas filhas e cuidou do filho "do coração". "Já tenho neto de 18 anos que também se criou aqui, a gente sente muito em sair".

Ela e o marido José Nildo Ferreira de Oliveira, 85, estão na Vila há 42 anos e lastimam a possibilidade de mudança. "Não tem casal que briga, filho que briga, menino que rouba. Durmo aqui, comprei uma máquina de lavar e botei ali, não tem quem tire, ninguém mexe. Então, por que eu tenho que sair daqui? Recebo minhas missionárias, as pessoas vêm rezar aqui, todo mundo é amigo”, frisa.

Para o ex-motorista particular Nelson Pedro de Moura, 67, a relação de amizade entre os moradores só ficou prejudicada com a iminente negociação das casas. "Onde a gente vai comprar uma casa de R$ 50 mil?", pergunta olhando para a esposa Vitalina Maria de Souza Moura, 66. "Eu só lembro quando os meninos eram pequenos. Tudo que se passou na minha vida foi aqui. É nossa fortaleza", concorda ela.

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