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Íntegra da entrevista com Maria Vilani

11:38 | Mai. 08, 2016
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Tipo Notícia


O POVO - A senhora nasceu em Fortaleza. Qual a relação que teve com a cidade, quais as lembranças?
Maria Vilani
- Não tenho muito o que falar. Tive uma infância muito restrita, muito dentro de casa. Eu não tive acesso à escola. Comecei a trabalhar aos 15 anos. Nasci e morei no bairro Joaquim Távora, mas não me lembro da minha trajetória lá. Depois, morei com meu pai em vários bairros. No começo da vida, ele era um comerciante, tinha uma casa de ferragens, mas depois, com as intempéries da vida, ele se transformou num vendedor ambulante. E mudava muito. Nunca pude fazer muitos amigos por isso. Mas morei maior parte da minha infância no Antonio Bezerra.

OP - A senhora saiu daqui aos 23 anos, já casada.
Maria Vilani -
Não, saí aos 18 anos. Eu fiquei um tempo no Rio de Janeiro, onde fui trabalhar de empregada doméstica no comecinho da década de 1970. Voltei, casei e foi aí que vim pra São Paulo.

OP - A senhora contou que não estudou quando criança. Só adulta, com quase 40 anos, frequentou a escola, ao lado dos filhos mais velhos. O que esta experiência transformou a sua vida?
Maria Vilani -
Eu comecei a estudar, mas não pude dar continuidade porque tinha que trabalhar, minha filha. Em Fortaleza, fiz parte daquele programa natureza ginasial. A gente estudava em casa e prestava exame quando tinha. Assim, por eliminação de matérias, eu consegui concluir o ginasial. Em São Paulo, passei 17 anos como dona de casa. Quando meus filhos eram adolescentes fomos fazer o colegial juntos. Estudei com os dois mais velhos, o Kleiton e o Kléber. O conhecimento transforma qualquer vida. Não foi diferente comigo.

OP - É verdade que a senhora voltou a estudar por insistência do Kléber (Criolo)?
Maria Vilani -
Meu filho sabia do meu desejo e, por ignorância, eu acreditava que não tinha direito de estudar numa escola pública eu achava que era só para crianças e adolescentes. Quando fui matriculá-los, ele insistiu que eu me informasse. Ele insistiu mas o desejo eu já tinha. Aliás, eu nunca fiquei sem estudar. Quando eu voltei à escola, eu já tinha material escrito para três livros. Eu nunca fiquei sem ler. Eu não consigo passar duas horas sem ler alguma coisa.

OP - O que a senhora lia?
Maria Vilani -
Tudo o que era possível o que eu conseguia jornal velho, amassado, bula de remédio.

OP – A senhora não só se transformou e foi transformando também o lugar onde vive. Através do Centro de Arte e Promoção Social, a senhora passou a movimentar a cena artística do Grajaú e quando foi estudar, formou-se em Filosofia e Pedagogia, foi aproximando o saber cotidiano do conhecimento acadêmico, relacionando um e outro sem hierarquias.
Maria Vilani -
Nem poderia. Há 40 anos, o Grajaú era um bairro dormitório. Sem saneamento básico, sem asfalto, sem lazer, sem diversão, e eu, uma pessoa criando filhos, não tinha possibilidade de transporte para levá-los para conhecer cultura. Quando a necessidade bate à nossa porta, a gente cria. O objetivo primeiro era dar oportunidade para os meus filhos. Então tive que trazer os jovens do bairro pra dentro da minha casa pra convivência. Na convivência, há troca e quando há troca, surgem as ideias. O Caps surgiu na minha cozinha.

OP – Onde ele funciona hoje? Qual a participação da senhora atualmente?
Maria Vilani -
Hoje temos uma sede na mesma rua que eu moro. É uma sede onde a gente faz reuniões, onde a gente tem uma oficina para formação de escritores. Agora os eventos acontecem no centro cultural do bairro. São as rodas de construção de conhecimento. Temos nove rodas por mês. Faço uma articulação para que elas surjam e continuem existindo , mas tem muita gente boa coordenando, mediando... Eu dou idéias, sou um eixo onde as outras pessoas se aglutinam até por carinho, por respeito, por simpatia pelos meus ideais, mas, na verdade, é o grupo que faz.

OP – Lendo a respeito da atuação do Caps, vi que são discutidos temas como drogas e drogadição, neuroeducação... Como são eleitos os temas?
Maria Vilani -
Filosofia, sustentabilidade, música, ciência da religião... Temos hoje o Pingado Filosófico que é filosofia e música para adolescentes a partir de 13 anos, mas sem limite de idade, até os 130. O Café Filosófico acontece em seguida. No segundo sábado do mês, temos uma roda de estudos jurídicos. Em seguida, uma roda de ciência da religião. A gente tem estudos da arte, educação, estudos afro-brasileiros... estamos sempre criando novos temas. O objetivo é tirar esses conhecimentos da clausura da academia. Porque todos nós somos capazes de pensar, refletir e construir desde que haja diálogo. Porque é no diálogo que se constrói o conhecimento.

OP – Alguns temas são espinhosos, falam diretamente de questões que atravessam a periferia das grandes cidades. Como tem sido, por exemplo, discutir religião?
Maria Vilani -
Principalmente nas épocas difíceis do ponto de vista econômico, as igrejas aumentam, pelo menos na periferia. Eu falo da periferia que é o meu lugar. O número de igrejas aumenta porque as pessoas buscam ali a solução para os seus problemas ou um anestésico para suportar a sua dor. Então é interessante que nós dialoguemos sobre essas crenças, suas origens, e principalmente suas influências no nosso meio. O meu objetivo – o grupo tem seu próprio objetivo, mas falo do meu – é que as pessoas conheçam a religião, entendam o processo histórico da religião e a busquem nela o sagrado e não realizações materiais. Que se entenda a religião na acepção do termo religare – de se religar a Deus.

OP – A senhora migrou para São Paulo, criou cinco filhos na periferia. Quais os grandes desafios que encontrou na maternidade?
Maria Vilani –
Todos. Porque a maternidade em si já é um desafio. Ser mãe em qualquer classe social e econômica é dos ofícios mais difíceis, senão o mais difícil. O bebezinho quando chega não traz um manual de instruções. E quando se trata da mulher que vem em busca de dias melhores para seus filhos... Quer ser mãe, mas não quer que seus filhos passem pelo que ela passou, pela fome, pelo descaso, pela falta de compreensão, pela falta de valorização... O grande desafio foi criá-los com valores de tal forma que mesmo convivendo lá fora com todas as dificuldades da vida, mesmo diante de todas as portas largas por onde eles podiam passar, eles não escolhessem os caminhos tortuosos da vida.

OP - A senhora tem um filho famoso...
Maria Vilani –
Não, não, não, pra mim todos os meus filhos são famosos. (risos)

OP - Sei que dois são professores.
Maria Vilani -
O professor Cleiton, meu filho, é professor na rede pública estadual e coordenador pedagógico na rede pública municipal, é professor de língua portuguesa e inglesa e é um grande escritor que insiste em não publicar. Tem o Kleber que também é educador, conhecido como Criolo, que dispensa falar porque você sabe mais dele do que eu. (risos) Tem a Cleane que é professora da rede pública municipal, que trabalha com formação de docentes, que é também uma poetisa e uma musicista maravilhosa que também insiste em ficar só no magistério. Tem a minha filha Maria Aparecida que optou pelo ofício de ser mãe e dona de casa e não quer outra vida, e tem o Cleon Júnior, meu caçulinha, que tem a vida própria, trabalha, faz faculdade e que compõe, faz letra e melodia, e é um cara que uma hora vocês vão ouvir falar dele também.

OP - Muito bom ver a senhora tão orgulhosa da cria. E em algum momento a fama de um deles mexeu na vida de vocês? Em algum momento isso foi motivo de preocupação?
Maria Vilani -
Não. De jeito nenhum. Meus filhos são felizes. E quando se é feliz é difícil uma tempestade derrubar. Eles torcem um pelo outro. Qualquer um alavanca é como se a família toda estivesse alavancando.

OP - A senhora também é avó.
Maria Vilani -
Tenho nove netos. Mas eu queria fazer um pedido. Queria que você me ajudasse a divulgar meu quarto livro que está sendo lançado agora no dia 24 de maio. O livro se chama Penteando a vida e é um livro de reflexões filosóficas diluídas em poemas. São 70 poemas e o livro foi feito por sete mulheres, é uma homenagem às mulheres. Meu sonho é fazer um lançamento em Fortaleza.

OP – Uma última questão. A senhora é professora e tem dois filhos professores. Na semana passada, inspirados no movimento de São Paulo, os estudantes começaram a ocupar escolas no Ceará reivindicando melhorias pra educação. Como a senhora vê as ocupações?
Maria Vilani -
Vejo com muito orgulho. É uma questão de consciência política. Esses meninos e meninas são resultado de uma educação democrática, libertadora, adotada nesses últimos anos. Esses meninos conheceram seus direitos e agora reivindicam por eles. Isso é motivo de muito orgulho.

OP – A senhora gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
Maria Vilani -
Quero desejar a todas as mamães um dia de muita reflexão. Principalmente por causa do momento histórico que estamos vivendo. Qual nosso papel nesse momento? O que podemos fazer pelos nossos filhos e netos que darão continuidade à vida. Proponho que invés de ganharmos presentes possamos presenteá-los.

 

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