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Transexuais recorrem à Defensoria para mudança de nome e gênero e relatam demora da Justiça

Mais de dez documentos são necessários para dar entrada nas ações de mudança. Além dessa comprovação, testemunhas são solicitadas. Espera leva até quatro anos no Ceará
19:36 | Abr. 19, 2016
Autor Rubens Rodrigues
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Rubens Rodrigues Repórter do OPOVO
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Tipo Notícia
As pessoas transexuais estão recorrendo à Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará para realizar a mudança de nome e gênero no Estado. Mesmo que o direito seja assegurado pelo Código Civil, a retificação no Registro Civil só ocorre por autorização judicial e pode demorar anos. 

De acordo com a Coordenadoria da Diversidade Sexual de Fortaleza e do Centro de Referência LGBT Janaina Dutra, há pessoas que estão com esses processos em tramitação há quatro anos. A Defensoria Pública aponta que a ampla documentação exigida no processo é o motivo da longa espera.
 
Para dar entrada nas ações são necessários mais de uma dúzia de documentos. Além da cópia da certidão de nascimento, identidade, CPF, reservista, é necessário apresentar certidões de antecedentes criminais, folha corrida, certidão negativa das Justiças Estadual e Federal, do TRE, da Receita e do Fórum. Cartão do SUS com o nome social, os laudos médicos e até testemunhas são solicitadas.
 
Em processo de retificação no Registro Civil para constar o nome de uso social e reconhecimento do gênero há nove meses, a cabeleireira Nicole Andrade, de 23 anos, classifica como "injusto" ter que provar para a Justiça que é a pessoa que sente ser desde a infância.
 
Constrangimento 
 
"É constrangedor juntar toda essa documentação e ainda ter que esperar que sejam a favor", relata Nicole. "Acho essa burocracia desnecessária porque nós (transexuais) não estamos fazendo nada ilegal contra ninguém. Não envolve outras pessoas". 

A jovem deu entrada na Defensoria em julho de 2015. Foi necessário, além de todos os documentos solicitados previamente, escrever uma carta de próprio punho contando o processo de descoberta e aceitação. Nicole anexou a carta aos outros documentos há cerca de dois meses e ainda não teve resposta.
 
"Sempre me senti mulher, desde criança. (Na época), eu não tinha informação, não tinha conhecimento do que é ser transexual. Eu me sentia diferente dos meninos", lembra. "Hoje eu não posso ir em um hospital sem passar por constrangimento. Não consigo pegar remédio com receita sem passar constrangimento. Não tem nem mais o que fazer agora. É esperar a resposta da Justiça".

A Defensoria recebe pessoas marcadas pela discriminação. Há relatos de pessoas que chegaram a fugir de casa, na adolescência, para fugir da violência sofrida pelo próprio pai. Com dificuldade de conseguir emprego, há até quem desenvolva depressão. 
 
O grupo Transrevolução, do Rio de Janeiro, estima que a expectativa de vida de uma travesti e transexual brasileira é de aproximadamente 30 anos, enquanto um brasileiro vive em média 74,6 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
 
Identidade de gênero e biológica 

A defensora pública geral e titular do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, Mariana Lobo, explica que existe uma luta histórica de afirmação dos direitos humanos para que o transexual seja compreendido. A pessoa trans nasce com o sexo biológico, mas se identifica e se porta como o sexo oposto. A identificação, enfatiza a defensora pública, é social.
 
"Gênero e identidade biológica vêm sendo confundidos ao longo da nossa história. A legislação brasileira permite que as pessoas tenham a dignidade reconhecida e a gente busca que o direito seja respeitado", diz Mariana Lobo. "O reconhecimento da identidade não é a mudança do sexo, mas a adequação à realidade social".
 
A assessora jurídica da Coordenadoria da Diversidade Sexual de Fortaleza e do Centro de Referência LGBT Janaina Dutra, Roberta Lima, diz que um dos maiores problemas no processo de mudança é que, em termos médicos, a transexualidade é uma patologia. "A ficha médica é extremamente ligada ao biológico. A condição é tratada como disforia de gênero, isso desqualifica o sujeito". 
 
Roberta defende que é preciso questionar os processos de retificação. "Quem vai determinar que uma pessoa é trans, é alguém que não é trans. As pessoas juntam todas as provas, não vale nem somente a pessoa dizer que é, como se a condição de transexual fosse algo tranquíla". O Centro de Referência LGBT Janaina Dutra atende cerca de 80 pessoas por mês.
 
O que diz o Conselho 
 
A resolução nº1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina, art. 3º, esclarece que a definição de transexual pode se dar a partir do momento que a pessoa se sinta desconfortável com o sexo anatômico natural. Outro critério é o desejo de perder as características primárias e secundárias do próprio sexo para ganhar as do sexo oposto. Tudo isso por, pelo menos, dois anos. Em Fortaleza, a 1ª e a 2ª Vara de Justiça Pública julgam os casos.

Tribunais de Justiça de estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul já têm concedidoa mudança de prenome e da identidade de gênero. No Ceará, foram abertas 24 ações desde o ano passado. Dessas, apenas duas foram julgadas. A Justiça concedeu a mudança do prenome para uma delas, e a substituição do nome e da identidade de gênero para a outra. O Ministério Público do Estado do Ceará deve entrar com recurso sobre a aprovação de ambas as mudanças, mas a defensora pública Mariana Lobo avalia como improvável o impedimento, já que a decisão vem do Supremo Tribunal de Justiça.

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