Bairros de Fortaleza: Jangurussu, da "Favela do Lixo" ao protagonismo cultural
O terreno que um dia recebeu todo o resíduo sólido da Capital hoje abriga escolas, UPAs e o Cuca Jangurussu. Conheça a trajetória do bairro que superou o estigma da "Favela do Lixo" para se tornar um polo de vida e cultura
13:59 | Dez. 21, 2025
O Jangurussu é lembrado por dois opostos: o antigo lixão a céu aberto e por ser um centro de produção cultural de Fortaleza. Pertencente à Regional 9, o bairro faz limites com Messejana, Passaré, Ancuri, Pedras e Conjunto Palmeiras, formando o que se chamava de Grande Jangurussu até 2007.
Nascido a partir da "Favela do Jangurussu", formada pela ocupação das áreas próximas ao aterro sanitário da Cidade por famílias de catadores, o bairro se desenvolveu em duas fases. Na primeira, os moradores trabalhavam em condições degradantes na catação do lixo, disputando o local com ratos, urubus e insetos e arriscando suas vidas na procura de descarte hospitalar.
Com o lixão desativado, a área recebeu conjuntos habitacionais e projetos de políticas públicas, dando início a um acelerado crescimento populacional e urbano. Eis a segunda fase de desenvolvimento do bairro.
Lar de mais de 70 mil habitantes, segundo o Censo de 2022, o terreno que um dia teve centenas de hectares cobertos por lixo, deu lugar ao bairro mais populoso de Fortaleza, equipado com UPAS, escolas e um Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cuca). Confira a história:
Jangurussu: qual é a origem do bairro?
O historiador Paulino Nogueira, afirmou em 1887 que o bairro recebeu esse nome por causa de um sítio de posse de Urbano de França Alencar. Ele conta que Jangurussu é um derivado das palavras "jaguar" e "uçu", significando onça grande.
O sítio Jangurussu existiu no início da povoação de Messejana nos séculos XVIII e XIX e se estendia da estrada Guarani, na antiga BR-116, ao Rio Cocó; e da entrada do Mondubim, que hoje é a avenida Perimetral, até o Sítio Ancuri.
Por outro lado, o pesquisador Daniel Martins Mamade conta que o bairro foi batizado assim devido à abundância de abelhas silvestres na região. Jangurussu também é derivado de outras duas palavras em tupi: yanga, que significa "enxame", e urussu, que significa "abelha silvestre".
Apesar de suas raízes remotas, o território que compreendemos como Jangurussu só começou a se desenvolver entre as décadas 1960 e 1980, com o assentamento das famílias que vieram do Interior e de pessoas que migraram de outros bairros.
Era comum que migrantes de outros estados do Nordeste se mudassem para o Ceará em busca de melhores condições de vida. Nessa época, a seca assolava a população que morava em áreas rurais.
Entretanto, quando chegaram à Capital, enfrentaram dificuldades para encontrar empregos devido a falta de formação. Com a criação do Aterro Sanitário do Jangurussu, em 1978, parte dessa população passou a trabalhar separando os resíduos.
Por necessidade e facilidade, essas pessoas passaram a morar nos entornos do aterro, que se expandiu. As casas eram construídas, em sua maioria, com materiais retirados do próprio lixão.
No entorno da "rampa", várias comunidades foram se formando, como a João Paulo II. Assim, surgiu a Favela do Jangurussu, chamada pelas outras regiões da cidade de "Favela do Lixo".
O "Lixão do Jangurussu"
A proposta do projeto de aterramento em Fortaleza era acomodar todo os resíduos sólidos em valas profundas, seguidas por camadas de areia para compactação. Esse processo, no entanto, não estava acontecendo no aterro do Jangurussu.
Localizado na Zona Sul, o aterro recebeu o lixo de toda a Capital por mais de 20 anos, tornando-se um dos maiores poluidores do rio Cocó, o principal recurso hídrico da cidade.
A precariedade do local era visível desde cedo. Em janeiro de 1979, uma denuncia do O POVO revelava que apenas uma fração do lixo era enterrada; a maior parte era abandoona a céu aberto, formando ilhas de detritos.
Em pouco tempo, o volume de descartes transbordou os limites planejados, chegando ao ponto de, em 1984, invadir a avenida Perimetral, obrigando os veículos a trafegarem sobre os resíduos.
O cenário de degradação era também sanitário: entre os restos domésticos, encontrava-se lixo hospitalar, medicamentos vencidos e resíduos contaminados. Conforme noticiado na época, em 1988, materiais infectados com Aids chegaram a ser incinerados no local.
O aterro presenciou episódios sombrios, como o abandono de fetos e de recém-nascidos entre os entulhos, enquanto famílias inteiras buscavam na "rampa" não apenas o sustento financeiro, mas também a própria alimentação.
Com o passar dos anos, o acúmulo de lixo e a quantidade de catadores trabalhando no local aumentou descontroladamente. Em 1993, um levantamento apontou que 21% desses trabalhadores eram menores de 17 anos.
"Na disputa do lixo com os adultos, as crianças fazem verdadeiros malabarismos. Escalam caçambas para recolher os detritos na pane superior do carro, enquanto os adultos estão estrincheirados com tambores e ciscadores, à espera dos entulhos", descreve a reportagem sobre como era a briga pelo "melhor lixo".
Depois de tantas problemáticas e funcionamento fora de controle, sua desativação começou a ser discutida na Câmara. Nessa época, em 1994, o número de catadores já chegava a 1.500.
Quatro anos depois, o termo de transferência e recebimento de equipamentos e para as obras para a desativação do lixão do Jangurussu foi assinado pelo governador Tasso Jereissati e pelo prefeito Antônio Cambraia.
O que aconteceu com o aterro do Jangurussu?
Embora os resíduos de Fortaleza tenham começado a ser depositados no local em 1979, foi somente após duas décadas de degradação que a pressão da comunidade surgiu efeito. Em julho de 1998, o aterro foi oficialmente desativado, deixando para trás 600 hectares cobertos de lixo, onde adultos e crianças ainda buscavam sobrevivência.
A transição administrativa começou anos antes, quando o complexo do Jangurussu foi cedido à Prefeitura de Fortaleza através do projeto Sanear, do Governo do Estado.
A partir de então, a responsabilidade administrativa ficou com a Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (Emlurb), que implementou uma unidade de reciclagem no local.
A proposta era profissionalizar o trabalho: a empresa cadastrou os catadores, ofereceu emprego na unidade de triagem e retirou as crianças do local.
Dos 600 trabalhadores que atuavam no antigo lixão, 360 foram integrados à unidade. No entanto, o retorno financeiro era irrisório. Pagava-se, na época, R$2,00 por um quilo de latinhas de alumínio e apenas R$ 0,15 pelo quilo de garrafa Pet.
Mesmo com a estrutura da triagem, o Jangurussu continuava a receber 270 toneladas de lixo diariamente, embora estimativas do O POVO indicassem que apenas 5% desse montante era, de fato, separado.
A tentativa de modernização esbarrou na falta de fiscalização e descaso contínuo. Sem o controle adequado e muros cercando o espaço, a unidade de reciclagem foi invadida por catadores que não tinham o credenciamento e por crianças, descumprindo o acordo firmado entre os governos e os trabalhadores.
O símbolo trágico dessa falha ocorreu apenas dois meses após o fechamento do aterro, quando um garoto de 10 anos, que havia entrado escondido para catar brinquedos, foi esmagado por um trator.
A inauguração oficial da Usina de Reciclagem do Jangurussu, em 2014, durante a prefeitura de Roberto Claudio, não mudou o cenário de descaso com a Associação de Catadores do Jangurussu (Ascajan).
Já em 2023, uma crônica do jornalista Demitri Túlio apontava que o local enfrentava problemas de abandono do poder público e infraestrutura precária.
Desenvolvimento do bairro Jangurussu
Com a desativação do aterro, o lixo da Cidade passou a ser transferido para o novo aterro de Caucaia. Assim, o Jangurussu ganhou espaço para se expandir e se consolidar como bairro, com novas comunidades se formando como o Parque Santa Maria, o Parque Santa Filomena, o Sítio São João, o São Cristóvão e outros.
A partir de 2005, o bairro passou por transformações relevantes, impulsionadas pelo Orçamento Participativo, da primeira gestão de Luizianne Lins.
Entre os marcos dessa fase, destacam-se a construção da avenida central e a implantação de um sistema de transporte público mais eficiente. Jangurussu também foi contemplado com o alargamento da Avenida Valparaíso e obras de drenagem, terraplanagem e pavimentação.
No ano de 2009 foi entregue o Conjunto Habitacional São João, em um prédio na Rua Verde cedido pela Prefeitura, e o Conjunto Habitacional Maria Tomásia. Com os empreendimentos, o bairro acolheu várias famílias que moravam em áreas de riscos de outras regiões de Fortaleza.
Essa expansão populacional foi acompanhada pela melhoria na mobilidade urbana, com a inaguração do sistema de transporte integrado entre terminais e o aumento da frota de ônibus, como a linha de ônibus Conjunto Maria Tomásia/Messejana, criada em dezembro de 2009, o bairro foi conectado com o resto da cidade.
No mesmo período em que recebia novos moradores, o bairro estampava páginas de jornal sobre insegurança.
O POVO noticiou, no mesmo ano, que o Jangurussu e a Messejana eram os bairros mais violentos da Capital. Dos 490 homicídios registrados pela pesquisa, 45 aconteceram no Jangurussu.
Em resposta social a esse cenário, em fevereiro de 2014, a Regional 9 recebeu o Cuca Jangurussu, localizado especificamente no Conjunto São Cristóvão.
Cuca Jangurussu: esperança para juventude
Com a expansão da Rede Cuca, a unidade do Jangurussu nasceu com o objetivo de reduzir a criminalidade por meio da inclusão artística e esportiva de jovens entre 15 a 29 anos.
Dados do Censo de 2010 já indicavam que o bairro era predominantemente habitado por essa faixa etária, o que tornava a região um territótio fértil para a produção cultural e o engajamento política-social.
A adesão da comunidade foi imediata, somente entre 2014 e 2015, conforme levantado pelo O POVO, cerca de 3.500 jovens passavam mensalmente pelo equipamento.
Além do Cuca, o bairro é fortalecido por outros espaços, como a Casa de Cultura Jangurussu, o Espaço Cultura e Vida Dorotéias, Centro Integrado Sociocultural Ser Arte.
Embora as barreiras da violência externa ainda persistam, esse projetos colaboram para oferecer outras perspectivas de vida. Assim, a juventude que no passado procurava sustento e alimento no lixo, hoje ocupa esses espaços para produzir cultura e transformar a realidade politica do bairro.