Piso salarial da enfermagem pode comprometer serviço de hemodiálise no Ceará

Impactos financeiros que devem ser causados pela medida de valorização salarial da categoria ameaça sustentabilidade de clínicas de diálise cearenses

Aprovado pelo Congresso Nacional em maio deste ano, o piso salarial da enfermagem pode entrar em vigor no Brasil a partir de agosto caso a matéria seja sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, que tem até quinta-feira, 4, para ratificar ou vetar o projeto de lei. Ao mesmo tempo em que é motivo de comemoração para a categoria, que há mais de 20 anos luta por esse direito, a proposta também causa preocupação em entidades públicas e privadas do setor da saúde devido à expectativa de grande impacto financeiro. No Ceará, a Associação dos Centros de Diálise do Estado (Aclidec) projeta que a medida deve resultar na diminuição da capacidade de atendimento aos pacientes renais e até no fechamento de clínicas de pequeno e médio porte.

A nova legislação fixa o piso dos enfermeiros em R$ 4.750 e o dos técnicos de enfermagem em R$ 3.325. Nos cálculos do presidente da Aclidec, Moisés Landim, o gasto médio com pessoal nas clínicas que prestam serviço de diálise deve triplicar. "60% dos recursos humanos desses estabelecimentos que atendem pacientes renais compreendem a equipe de enfermagem. Isso vai representar um custo, no mínimo, três vezes maior com folha salarial. A conta não vai fechar”, crava.

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Atualmente, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, há 36 centros de diálise em funcionamento no Ceará, sendo 18 unidades particulares. Mesmo nas clínicas privadas, a maioria dos atendimentos é financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo a Acledic, cerca de cinco mil cearenses realizam tratamento de hemodiálise na Capital e no Interior do Estado. Pelo menos 95% dos pacientes têm o tratamento custeado integralmente pelo SUS. A outra parte é atendida por convênios médicos e planos de saúde. No caso das clínicas privadas, acrescenta a entidade, a repercussão financeira da iminente aprovação do piso da enfermagem se soma a outro gargalo já enfrentado pelo setor: a defasagem da tabela que remunera o serviço no âmbito do SUS.

Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), o valor pago por sessão de hemodiálise, atualmente de R$ 218, deveria ser de pelo menos R$ 303 para a cobertura total dos custos relativos ao procedimento. "Já existia essa questão da defasagem da tabela, que era uma dificuldade enfrentada há muitos anos pelas clínicas, e agora com esse aumento dos salários, a sustentabilidade desses centros de atendimento fica ainda mais ameaçada", pontua Landim.

Como alternativa aos possíveis impactos da implantação do piso, o representante do setor propõe que haja cofinanciamento estadual do serviço público de diálise. Pela proposta, o Governo do Estado faria um repasse de R$ 60 por sessão às clínicas que disponibilizam o tratamento. Considerando que em média cada paciente realiza 23 sessões mensais, o custo da medida aos cofres públicos do Estado seria de aproximadamente R$ 6,9 milhões ao mês. “Para o Governo, isso representa muito pouco. Para os pacientes, é uma questão vital”, defende o presidente da Acledic.

Landim ainda prospecta que se nenhuma medida de socorro financeiro for implementada pelos Governos (estadual e federal), a tendência é que haja fechamento de clínicas ainda este ano. “Já ouvi de um proprietário dizer que se o piso entrar em vigor sem nenhuma contrapartida, a clínica dele pode quebrar financeiramente em menos de seis meses", afirma.

Uma eventual redução na oferta do serviço impactaria diretamente na vida dos pacientes renais atendidos pelos estabelecimentos privados, conforme a Acledic. "O paciente não pode esperar. Se ele ficar sem o serviço, ele vai a óbito. Pelo menos 30% deles não conseguem viver mais de 15 dias sem as sessões”, alerta o médico.

A presidente da SBN, Cláudia Oliveira, explica que o custo médio das sessões vem aumentado continuamente desde o começo da pandemia em virtude da escalada dos preços internacionais de insumos, peças de reposição e materiais de consumo que são utilizados no procedimento.

Ela estima que, para amenizar a alta nos gastos e amortecer o impacto do piso salarial dos enfermeiros e técnicos, seria necessário uma correção de ao menos 27,5% no valor repassado pelo SUS às clínicas privadas. "Não somos contra a implantação do piso, inclusive entendemos que é um importante instrumento de valorização da categoria, mas também é uma necessidade das clínicas poderem sustentar isso sem ter que fechar suas portas ou diminuir a capacidade de atendimento", afirma. No Brasil, conforme a SBN, existem cerca de 800 centros de diálise para um universo de 140 mil pacientes renais.

A técnica de enfermagem Rosa Sindeaux, 50, moradora de Fortaleza, realiza tratamento de hemodiálise há mais de 15 anos em uma unidade de saúde particular da Capital localizada no bairro Álvaro Weyne. São três sessões por semana, ela conta. Cada uma, com duração média de quatro horas. "Para nós, que precisamos desse tratamento para viver, o funcionamento dessas clínica é questão vital. Não consigo nem imaginar como seria se realmente houvesse necessidade de fechamentos", declara.

Embora o tratamento esteja sendo prestado de forma regular, a paciente reclama de atrasos no fornecimento de medicações complementares. "Remédios que são essenciais para o tratamento, como o Eprex, estão faltando com frequência ultimamente. Tudo isso afeta diretamente a nossa vida e causa muita preocupação", diz.

Repercussão geral

A implantação do piso da enfermagem não preocupa apenas o setor privado. No Ceará, a medida deve custar cerca de R$ 516 milhões por ano aos cofres das 184 prefeituras. O cálculo é da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Somente na Capital, o gasto adicional previsto é de R$ 163 milhões. De acordo com a presidente do Conselho das Secretárias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems), Sayonara Cidade, os municípios não têm como arcar com o pagamento do piso sem que haja uma contrapartida do Governo federal.

"O impacto financeiro é tão grande que ele vai ser barrado pela própria Lei de Responsabilidade Fiscal. A gente apoia incondicionalmente a valorização salarial, mas precisamos saber de que forma isso será efetivado", afirma Sayonara.

Segundo o texto do projeto de lei, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios terão até o fim do exercício financeiro de publicação da futura lei para se adequar ao novo padrão de remuneração dos profissionais da enfermagem. Isso significa que, caso sancionada, a lei obriga os entes federados a iniciar o pagamento do piso até dezembro deste ano.

Na expectativa pela sanção da proposta, a presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren-CE), Ana Paula Lemos, destaca que o piso salarial da categoria é um pleito que já dura mais de duas décadas, mas que ganhou força durante o período mais agudo da pandemia. Com a sobrecarga de trabalho em hospitais públicos e privados, os profissionais de enfermagem assumiram o protagonismo na linha de frente do combate à Covid-19.

"Essa valorização salarial serve também como reconhecimento pelo esforço e entrega da categoria nessa fase mais critica da pandemia. Foi um período muito difícil, mas em que ficou evidenciada a importância desses profissionais para salvar vidas", disse Ana.

A representante do Conselho ainda observa que, para além das repercussões financeiras, há que se destacar os prováveis efeitos positivos da medida tanto na vida dos profissionais como no serviço prestado aos pacientes. "A gente hoje tem que se submeter a dois, três empregos para ter um rendimento digno. Com esse piso, o profissional ganha em qualidade de vida, e os pacientes ganharão em qualidade na assistência oferecida a eles”, enfatizou.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que os procedimentos de terapia renal financiados via tabela SUS são custeados de forma integral pelo Fundo de Ações Estratégicas e Compensações (Faec), órgão de custeio criado no âmbito da Política Nacional de Atenção ao Portador de Doenças Renais. A pasta ainda destacou que o cuidado do SUS a pacientes renais não se limita aos repasses financeiros destinados às clínicas particulares que disponibilizam o tratamento.

"Essa visão imbui um viés mercadológico que não deve ditar a lógica de financiamento do Sistema, que também se mantém mediante outros formatos diversos de investimentos e custeio: ressarcimento por produção; incentivos (por metas ou por oferta de serviços específicos); orçamentos públicos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vez que o financiamento do SUS é tripartite; convênios para execução de construções e reformas e aquisição de equipamentos e insumos; beneficência e filantropia; entre outros", justifica o Ministério. 

O POVO também procurou a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) para saber se haveria possibilidade de cofinanciamento estadual do serviço de hemodiálise no Estado, a exemplo do que já acontece em Santa Catarina e no Rio de Janeiro. A pasta, no entanto, afirmou que no momento não irá se pronunciar sobre o assunto.

Confira a nota do Ministério da Saúde, na íntegra:

O Ministério da Saúde esclarece que em junho de 2004 instituiu a Política Nacional de Atenção ao Portador de Doenças Renais. Até então, o modelo de prestação de serviços no SUS para DRC era baseado em procedimentos, centrado no alto custo e caracterizado pela ausência de gestão pública e de estratégias de integração entre os diversos níveis de atenção.

Em 2018, o Ministério da Saúde publicou portarias para dispor sobre os critérios para a organização, o funcionamento e o financiamento do cuidado da pessoa com doença renal crônica (DRC) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram alteradas as tipologias e a classificação dos serviços de alta complexidade no tratamento da DRC, permanecendo a mesma linha de tratamento já preconizada e pelas Diretrizes Clínicas para o Cuidado ao Paciente com Doença Renal Crônica no SUS.

A atenção à saúde da pessoa com DRC é organizada conforme as seguintes tipologias e devem seguir os critérios estabelecidos pela Portaria GM/MS n° 1.675/2018:

15.04 Atenção especializada em DRC com Hemodiálise;
15.05 Atenção especializada em DRC com Diálise Peritoneal; e
15.06 Atenção especializada em DRC nos estágios clínicos 4 e 5 (pré-dialítico).

Com relação ao financiamento, a Portaria nº 3.603, de 22 de novembro de 2018, estabelece que os procedimentos relacionados à TRS, cobrados por meio de Autorização de Procedimentos Ambulatoriais (APAC), são financiados, em sua totalidade, por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC), definidos com base na produção apresentada pelo gestor de saúde no Sistema de Informação Ambulatorial (SIA/SUS).

Cabe informar ainda que a Tabela SUS elenca procedimentos de promoção e prevenção em saúde, diagnósticos, clínicos, cirúrgicos, de órteses, próteses e materiais especiais, de medicamentos, de transplantes, entre outros, cabendo aos diferentes setores do Ministério da Saúde, em conformidade com as competências definidas pelo Regimento Interno do órgão, a revisão de quaisquer atributos dos procedimentos.

Vale salientar que o cuidado no SUS não é financiado apenas pelos valores ressarcidos de acordo com a Tabela SUS, como comumente se imagina; essa visão imbui um viés mercadológico que não deve ditar a lógica de financiamento do Sistema, que também se mantém mediante outros formatos diversos de investimentos e custeio: ressarcimento por produção; incentivos (por metas ou por oferta de serviços específicos); orçamentos públicos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vez que o financiamento do SUS é tripartite; convênios para execução de construções e reformas e aquisição de equipamentos e insumos; beneficência e filantropia; entre outros.

Por fim, o Ministério da Saúde esclarece que o custeio/financiamento dos procedimentos relacionados à atenção especializada no SUS é feito tanto por transferência regular e automática de recursos do gestor federal ao gestor municipal ou estadual (Bloco de Custeio das Ações e Serviços Públicos de Saúde - Grupo de Atenção de Média e Alta Complexidade - MAC; Fundo de Ações Estratégicas e Compensação – FAEC; e diversos incentivos financeiros), como com recurso do tesouro de Estados e Municípios para financiar a necessidade de saúde local.

A Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Renal é desenvolvida de forma articulada entre o Ministério da Saúde, as Secretarias de Estado da Saúde as Secretarias Municipais de Saúde com o objetivo de desenvolver estratégias para a promoção da qualidade de vida, educação, proteção e recuperação da saúde e prevenção de danos, protegendo e desenvolvendo a autonomia e a equidade de indivíduos e coletividades.

Portanto, tendo em vista o princípio da descentralização, compete aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal identificar suas necessidades e realizar o planejamento e a organização das ações e serviços de saúde, de forma a garantir o atendimento necessário e em tempo oportuno para a população.

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