Pacientes com HIV relatam dificuldades em conseguir consultas no Hospital São José

Segundo os pacientes, o longo tempo entre uma consulta preocupa por deixar os pacientes no escuro sobre o quadro da doença. Unidade afirma que medidas visam segurança sanitária por causa da Covid-19

Há mais de um ano sem acompanhamento e sem previsão de ser atendido. É assim que as pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) se encontram em relação ao atendimento no Hospital São José. Os pacientes relatam as dificuldades de marcar consultas com um infectologista para apresentarem resultados de exames ou acompanharem o quadro da infecção. A unidade explica, entretanto, que a situação é decorrente da transformação do hospital para o atendimento de Covid-19 e por uma medida de segurança sanitária.

Sabrina Luz é uma das pacientes com dificuldade no agendamento. Ela descobriu no dia de sua consulta agendada na última segunda-feira, 10, que o atendimento estava suspenso. Moradora de Caucaia, na Região Metropolitana (RMF), ela conta que ficou surpresa pelo cancelamento porque não foi avisada com antecedência e já estava esperando pelo acompanhamento há um ano. "Minha última consulta foi em março de 2020, quando fui marcar, não tinha para o ano passado (2020). Só ia ter esse ano. Eu estava com um ano marcada essa consulta e eles nem informaram se tinha voltado ou não", comenta ela.

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Diagnóstica há 11 anos, ela está com o vírus indetectável e afirma que precisa realizar os exames e a avaliação dentro do prazo de seis meses. Isso segue a recomendação técnica do Ministério da Saúde (MS), de 2018, de que pacientes com quadro clínico estável ou com supressão viral e assintomática em terapia antirretroviral (TARV) podem retornar para consultas em intervalos de até 6 meses. Nesses casos, exames de controle também poderão ser realizados com periodicidade maior.

Fique por dentro das siglas:

HIV - É a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. Causador da aids, ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças. Ter o HIV não é a mesma coisa que ter aids.

PVHIV ou PVHA - Pessoas vivendo com HIV/aids. O desenvolvimento e a evolução dos antirretrovirais para tratar o HIV transformaram o que antes era uma infecção quase sempre fatal em uma condição crônica controlável, apesar de ainda não haver cura.

TARV - Tratamento com medicamentos antirretrovirais (ARV). Surgiram na década de 1980 e agem inibindo a multiplicação do HIV no organismo e, consequentemente, evitam o enfraquecimento do sistema imunológico.

Fonte Ministério da Saúde

O texto do Ministério aponta o retorno em intervalos menores, entre 7 e 15 dias, para pacientes após introdução ou alteração da TARV, com o propósito de observar eventos adversos e dificuldades que possam comprometer a adesão aos medicamentos. Luz ressalta que seu quadro atualmente é indetectável e, por isso, está um pouco mais tranquila com a demora, mas pondera sobre o relato de outros pacientes. “Eu me preocupo com as pessoas que estão iniciando o tratamento, porque não é fácil. Muitas pessoas têm me relatado a dificuldade de iniciar, porque não tem consulta”, explica.

A ativista pontua que sua preocupação é ainda maior porque houve a troca de médico que faz seu acompanhamento e  ela ainda não recebida pelo novo profissional. "Antes da pandemia, a gente já estava com essa dificuldade de demora para marcar a consulta. Quando eu ia marcar não tinha para seis meses, às vezes 10 meses ou um ano [...] Não sei nem quem é meu médico, porque não passei por ele ainda", ressalta.

Luz explica que realizou os exames em janeiro, mas ainda não foi mostrar os resultados. "No meu caso, era a consulta. A gente precisa passar por esse acompanhamento e até para pedir novos exames. Passei um ano esperando para fazer exame de carga viral", afirma.

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Ela ressalta que foi informada que o cancelamento e a demora em conseguir um agendamento foi por conta da pandemia, já que a unidade se tornou referência em tratamento de pacientes para Covid-19. “Descobre uma coisa para cobrir outra. Não adianta querer dar preferências às pessoas com Covid, mas esquecer das pessoas vivendo com HIV que também precisam de urgência”, ressalta ela.

Pandemia

 

A suspensão de consultas e também de cirurgias eletivas tem sido uma medida adotada com o aumento da hospitalização de pacientes pela Covid-19, assim como foi informado à Sabrina Luz. Atualmente, as unidades de saúde seguem recomendação da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), que, em ofício divulgado em fevereiro, recomendou a suspensão de cirurgias eletivas e serviços ambulatoriais no Estado. O documento é direcionado a hospitais, clínicas, ambulatórios, laboratórios e unidades de saúde públicas e privadas cearenses.

O ofício é assinado pelo secretário Carlos Roberto Martins Rodrigues Sobrinho, o Dr. Cabeto, e considera a medida importante para o controle e contenção de riscos e danos à saúde pública. O objetivo é reduzir alertando o fluxo de pacientes nas unidades de saúde, de forma a prevenir a contaminação pela doença, o que tem sido uma preocupação da equipe do hospital, como explica a diretora técnica da unidade, a médica infectologista Tânia Coelho.

Com a pandemia, o serviço de atendimento precisou ser manejado e dividido entre emergência Covid e não Covid, para evitar o contato entre os dois grupos. De acordo com a diretora, para dar assistência aos pacientes vivendo com HIV/aids, o ambulatório, que antes era usado para as consultas de rotina, virou uma emergência não Covid. Agora, segundo a médica, o hospital segue prestando o atendimento em algumas frentes como ambulatório para fazer medicações de uso contínuo injetáveis, atendimento de primeira vez, pacientes recém diagnosticados, ambulatório de exposição pré e pós exposição sexual e de pediatria, com crianças infectadas com HIV.

“Pacientes que chegam com necessidade de internamento, continuam sendo internados, eles são acolhidos nessa emergência não Covid. Se ele(paciente) tiver qualquer intercorrência, ele pode vir 24 horas”, ressalta Coelho. Ela pontua que, ainda quando as atividades foram retomadas no ano passado, apenas 70% da capacidade pode funcionar . "Justamente para não aglomerar e, por isso, a gente teve que remarcar algumas consultas”, pondera a diretora.

Ela afirma também que os pacientes estáveis deveriam comparecer apenas uma ou duas vezes ao ano para diminuir o risco de contaminação, além de estarem recebendo normalmente os medicamentos. “Isso é recomendação do Ministério da Saúde, que o paciente estável não precisa ficar vindo constantemente ao médico. [...]Até pela Organização Mundial de Saúde, os pacientes que estão estáveis com boa adesão aos medicamentos, carga viral indetectável, devem comparar apenas uma vez ao ano”, defende a médica.

Na unidade, existem 15 mil pacientes cadastrados para controle, dos quais 9.641 são acompanhados no ambulatório. O São José atende pacientes vindos do interior do Estado e, desde 2019, não recebe mais pessoas vivendo com HIV sem comorbidades. Isso acontece porque outras unidades do Ceará, como policlínicas e unidades básicas, têm sido capacitadas para atender esses pacientes e aumentar a capilaridade da rede. Mesmo assim, a unidade recebe 57,8% dos pacientes do Estado, considerando que, em 2018, segundo dados do Ministério da Saúde, o Ceará tinha 16.661 de PVHIV em tratamento antiviral.

Ministério Público

 

A suspensão das consultas no São José acabou envolvendo outras instâncias. A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids Núcleo Ceará (RNP+Ceará) oficiou ao Ministério Público uma denúncia com pelo menos 70 nomes de pessoas que tiveram consultas desmarcadas. No texto, eles ressaltam que a situação deixa os pacientes no escuro sobre o quadro de saúde, já que, mesmo tendo os exames de rotina, sem as consultas, um médico infectologista não pode avaliar. “Discordamos quanto à afirmação de que a suspensão das consultas não cause desassistência e prejuízo à saúde das PVHA, mesmo que o hospital tenha mantido os exames de rotina", diz o texto.

“Como fica essas pessoas há mais de um ano sem essas consultas. E quando voltar vai ser muito gradativo, elas vão esperar mais quanto? Algumas pessoas nesse período precisam trocar medicamento, quem troca o remédio é o médico”, explicou Vando Oliveira, coordenador do RNP+Ceará. Segundo ele, a preocupação é que, mesmo diante dos avanços da Medicina, os pacientes ainda precisam de tratamento e acompanhamento para avaliação dos efeitos dos medicamentos para o seguimento de uma qualidade de vida.

“Pacientes com 10, 20 anos, que tomam remédio. Por qualquer coisa, esse medicamento pode vir a não fazer mais efeito. O que nos segura vivos com HIV é ter o medicamento todo dia. O prejuízo é o adoecimento, internamento e óbito lá no final”, acrescenta o coordenador. Além do lado clínico, Oliveira pondera sobre a saúde mental das pessoas vivendo com HIV/aids na pandemia. “A própria preocupação de não ter consulta, as pessoas já estão assustadas. Eu tinha uma dor de cabeça, estou com falta de ar: É Covid ou todo um emocional que ela está vivendo, pelo o acompanhamento do vírus HIV que não está tendo?”, questiona o coordenador.

Por nota, Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) confirmou a existência do procedimento em trâmite na 138ª Promotoria de Justiça de Fortaleza para apurar denúncia enviada pela Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV e Aids no Ceará (RNP+Ceará) sobre suspensão dos atendimentos no ambulatório do Hospital São José, em Fortaleza.

Ao MP, foi informado, pelo hospital, que os atendimentos regulares não foram suspensos e que somente suspendeu os eletivos para proteger os pacientes da contaminação, pelo fato de a unidade também receber pacientes com Covid-19. “Como há novas informações, a promotora de Justiça Lucy Antoneli vai notificar novamente o Hospital para prestar mais esclarecimentos e continuará a mediar a situação”, ressaltou a nota do Ministério Público.

A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) também respondeu sobre o caso e informou que a suspensão dos atendimentos ambulatoriais e de cirurgias eletivas foi feita em decorrência da segunda onda da pandemia da Covid19. Entretanto, a Sesa ressaltou que planeja retornar com os serviços assim que a pressão na saúde devido a pandemia diminuir.

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