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O que muda com a alteração dos limites territoriais entre Tabuleiro do Norte e Alto Santo

Projeto de Lei que regulariza situação domiciliar para famílias de 23 comunidades dos dois municípios passa por apreciação na PGE e deverá ser sancionado pelo governador Camilo Santana

Da certidão de nascimento ao atestado de óbito. O batismo, os aniversários, os casamentos, a compra do primeiro terreno, as eleições, o sepultamento. Todos os passos da vida de cerca de 2,6 mil habitantes de 23 comunidades situadas em área de litígio entre Tabuleiro do Norte e Alto Santo eram dados com incerteza em relação a uma garantia básica da condição de ser cidadão. Desde 1957, com a promulgação de lei que determina o limite entre os municípios, um erro de interpretação geográfica fez com que as famílias registrassem posses em uma cidade, mesmo estando nos limites territoriais de outra. Muitas pessoas da região sequer sabiam da circunstância.

Por consequência, comunidades inteiras que eram situadas legalmente em Alto Santo criaram laços, relações e raízes em Tabuleiro do Norte. Situação semelhante, em menor escala, acometia alguns povos que se consideravam de Alto Santo, mesmo fixando residência em território tabuleirense. Entretanto, a contenda que dura mais de cinco décadas aguarda, finalmente, uma correção histórica.

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Um Projeto de Lei (PL), encaminhado pela bancada do PT, que altera os limites territoriais dos dois municípios para retratar a realidade das populações que habitam na área, foi aprovado por 44 votos a favor e duas abstenções em sessão na Assembleia Legislativa (AL-CE) na quinta-feira, 10 de dezembro. Agora, o PL segue em apreciação pela Procuradoria Geral do Estado (PGE), conforme o trâmite legal, para então ser sancionado pelo governador Camilo Santana (PT).

A sessão foi acompanhada por uma comissão de moradores, pelo prefeito de Tabuleiro do Norte, Rildson Vasconcelos (Progressistas), pela presidente da Câmara Municipal de Tabuleiro, Clênia Chaves (PP), entre outros vereadores do município. Durante o processo, foram realizadas reuniões com o atual presidente da AL-CE, Sarto Nogueira (PDT), e com os prefeitos Rildson Vasconcelos, de Tabuleiro, e Íris Gadelha (PP), de Alto Santo, além dos presidentes das duas Câmaras Municipais.

Um dos autores do projeto, o deputado estadual Acrísio Sena (PT) esteve na mediação entre a Casa Legislativa e as lideranças comunitárias que reivindicaram a mudança. Ele ainda descreve que entre o primeiro contato com a comissão de moradores, em abril de 2019, e a aprovação pela AL-CE foram realizadas três audiências, duas em Fortaleza e uma em Campos Velhos, comunidade que passará a integrar os limites de Tabuleiro do Norte após sanção da lei.

"Essa população se reivindica desde 1957 como Tabuleiro do Norte. A importância do projeto de lei é devolver definitivamente os laços de pertencimento dessas pessoas com o seu território. A lei vem ao encontro da expectativa dessas quase duas mil pessoas em ver resolvidas definitivamente as suas vidas, podendo dormir tranquilas como sendo de Tabuleiro", afirma Acrísio Sena em entrevista ao O POVO.

A comissão de moradores reuniu representações das comunidades de Belém, Sussuarana, Cobiçado, Laje das Oiticicas, Lagoa Grande, Groelândia I e II, Alegre, Ema, Campos Novos, Saco do Bode e Campos Velhos. No entanto, a nova lei também acarretará mudanças para as áreas de Campo do Rosendo, Santa Matia, Nova Floresta, Baixa de Minas, Baixa dos Cabras, Baixa do Neco, Laje Feia, Laje do Meio, Juazeiro de Chico Barros e Deserto, situadas na área de litígio entre os dois municípios.

O que muda com a nova lei?

 

Ao todo, uma região de 295,3 km² será afetada com a regularização. O território de Alto Santo, que possui área atual de 1.344,8 km² incorpora 48,7 km² que pertenciam a Tabuleiro do Norte, mas ainda assim, sofre redução e passará a ter 1.146,87 km² de extensão. Já Tabuleiro, que hoje tem 848, 7 km², englobará mais 246,6 km² que pertencem a Alto Santo e passará a ter 1.046,63 km², considerando também que cederá uma porção menor de terra para o município vizinho.

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Alto Santo

- Área atual: 1.344,8 Km²
- Área de ajuste: 48,7 Km²
- Nova área: 1.146,87 Km²

Tabuleiro do Norte

- Área atual: 848,7 Km²
- Área de ajuste 246,6 Km²
- Nova área: 1.046,63 Km²

A nova redação aprovada pela AL-CE, que modifica o Anexo VIII, a que se refere o artigo 1º da lei nº 16.621/2019, resolve impasse que não conseguiu ser acordado por meio de um consenso entre as Câmaras municipais das duas cidades. O principal impedimento no diálogo entre os municípios, antes da pauta chegar ao Legislativo Estadual, era posto pelos representantes políticos de Alto Santo, município mais prejudicado com as alterações. Além da perda territorial, a cidade também deixa de receber parte da arrecadação oriunda do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), devido à redução no número de habitantes, que agora passam a se reportar legalmente a Tabuleiro.

A defesa de Alto Santo, representada pelo advogado Pedro Teixeira, chegou a estimar em audiência pública na AL-CE, em agosto de 2019, que o decréscimo orçamentário oriundo de recursos de transferência voluntária era de cerca de R$ 300 mil. Na época, o município defendeu a realização de um plebiscito. Segundo estimativa calculada pelo Observatório de Informações Municipais, a cota do FPM para Alto Santo em 2020 é de R$ 16.816.370; enquanto Tabuleiro do Norte recebe em torno de R$ 22.421.827.

Já o prefeito de Tabuleiro, Rildson Vasconcelos, alegou impactos positivos para a população das comunidades afetadas, que já demanda serviços públicos na região. “Por mais que a prefeita quisesse oferecer todos esses serviços que Tabuleiro oferece atualmente, levaria pelo menos um ano de adaptação”, ponderou. Devido a mudança na legislação de criação de municípios, que tirou parte da autonomia das assembleias legislativas estaduais, também houve um requerimento ao presidente do Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, solicitando a regulamentação do artigo 14, da Constituição Federal, que trata de fusão, incorporação e separação de municípios, para que a medida proposta pudesse avançar.

Situado a extremo Leste do Ceará, a cerca de 211 km de Fortaleza, a área disputada possui destaque na produção leiteira, além de contar com cultivo de gado e fonte de água mineral. Em 2008, a terra foi cobiçada como reserva de petróleo, no entanto, após uma temporada de estudos realizados pela Petrobras, a hipótese foi deixada de lado.

"Nossa história é maior que uma linha"

Moradores de área de litígio, presentes em sessão na Assembleia Legislativa, celebram aprovação do projeto de lei
Moradores de área de litígio, presentes em sessão na Assembleia Legislativa, celebram aprovação do projeto de lei (Foto: Reprodução/Demétrio Andrade)

A área de litígio entre Alto Santo e Tabuleiro do Norte existe desde a criação dos dois municípios, em 1957, após processos emancipatórios envolvendo Limoeiro do Norte e distritos que agregava anteriormente. Uma das lideranças do movimento de correção territorial, Ednard Feitosa, 56, define a situação como "erro histórico".

A divisa entre os dois territórios, publicado na lei 3.815, de 13 de setembro de 1957, de criação dos municípios e registrado pelos mecanismos de georreferenciamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), é simplificada com uma linha reta no mapa, tendo como referência somente o curso das águas da Lagoa do Tapuo. Desse modo, desconsiderando a realidade prática das comunidades que habitavam o local.

De acordo com Ednard, até 1957, Limoeiro do Norte, que era o município-mãe, tinha vários distritos, incluindo Tabuleiro de Areia, Alto Santo, São João do Jaguaribe, Castanhão, Barra do Figueiredo e Olho d'Água da Bica. Com o processo emancipatório de 57, foram criados três municípios. Tabuleiro de Areia e Olho d'Água da Bica formaram Tabuleiro do Norte. São João do Jaguaribe se tornou um município. Os outros formaram Alto Santo. "No momento de dividir essas áreas, criando novos municípios, se esqueceram que nessas áreas moravam gente. Eu disse isso em um pronunciamento que fiz no plenário da Assembleia, em uma audiência pública", disse Ednard. Morador de Campos Velhos, ele relata que todos os seus documentos foram registrados no cartório de Olho d'Água da Bica.

O descaso público com os moradores das comunidades afetadas fez com que, durante décadas, a maior parte dos habitantes não soubesse que, na verdade, não moravam no município que imaginavam. "O meu pai, Chico Feitosa, chegou nessa área [pertencente a Alto Santo] em 1954. Ele votou pela primeira vez na vida dele com a emancipação de Tabuleiro. Ninguém informou que ele precisaria votar em Alto Santo", comenta Ednard. Durante anos, as famílias desconheceram a real situação domiciliar e fincaram raízes em outra cidade.

O desenvolvimento dos próprios munícipios contribuiu para isso. Até hoje, moradores reclamam que não há estrada de acesso direto das comunidades para Alto Santo. Além disso, Ednard aponta que, ao invés das escrituras dos antigos moradores serem transferidas à época de Limoeiro para Alto Santo, toda a região foi registrada em Tabuleiro do Norte.

Agravo do problema

 

Passados 62 anos de emancipação, a área de litígio não ocasionava problemas graves para os moradores, já que na prática, todos conseguiam acessar os serviços de Tabuleiro do Norte, mesmo residindo em território que legalmente pertencia a Alto Santo. No entanto, o contexto mudou em 2019. Em trabalho de inspeção, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) verificou a disparidade entre endereços e zonas eleitorais nos registros eleitorais de centenas de eleitores da região e encaminhou mudança de registro domiciliar e eleitoral.

"Anoitecemos Tabuleiro e amanhecemos Alto Santo. Se existe uma atrocidade cometida por um Poder foi essa conosco. Ficamos todos atônitos. Nós não temos vínculo nenhum com Alto Santo. Não temos nem estrada de acesso. Para ir a Alto Santo, temos que passar por dentro de Tabuleiro", disse Ednard. O problema afetou a ele e a cerca de 1.300 pessoas, que passariam a votar em outra cidade, além de ter suspensos alguns serviços públicos de Tabuleiro, com complicações no acesso a saúde, educação e transporte.

O imbróglio com os títulos de eleitores foi resolvido em uma audiência com o presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), desembargador Haroldo Máximo, que corrigiu o domicílio eleitoral de 1.200 títulos da região. No entanto, o alerta ultrapassou os limites do processo eleitoral. "Se você considerar que cultura gera comportamento, então a nossa base comportamental foi desmontada", alega o líder do movimento.

"A maioria das famílias recebe benefícios sociais, Bolsa-Família, são pessoas que necessitam de serviços de saúde, são pessoas que dependem das ações de política pública. A vida toda daquelas pessoas era em Tabuleiro do Norte. Quando o Judiciário transfere o endereço das pessoas para outro município, obriga as pessoas a se deslocarem para esse outro município. Aí que começa a confusão", afirma Antônio Soares, presidente da Federação das Associações Comunitárias de Tabuleiro do Norte (Facotan), organização que esteve na linha de frente do diálogo com a AL-CE.

O apelo originou um movimento de coletivo formado por moradores da comunidade, que se dividiram em diversas comissões e buscaram sensibilizar para a situação por meio de campanha audiovisual, com os moradores mais antigos da região. Entre eles, Sr. Hilário de Bem Ti Vi, de 98 anos, destaca: "eu nasci nos Campos Novos, mas em julho de 1922 chegamos aqui, num rancho velho de mofumbo, um chiqueiro de criação ao redor, a mamãe 'pastorando' nós. Sendo Tabuleiro. Não se falava nem em Alto Santo".

Após verificação da PGE, o Projeto de Lei deverá ser sancionado pelo governador Camilo Santana e passará a vigorar a partir da data de publicação. "É um sentimento de reconquista da nossa identidade. Um sentimento de vitória, de que a luta fez sentido. Eu sou de Tabuleiro. Foi assim que eu nasci, fui registrado, fui criado e fui educado. É a conquista da minha cidadania. É saber que o legado do meu pai será respeitado", finaliza Ednard Feitosa.

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