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As origens do cearencês: esse negócio de "arengar" com os outros veio de onde?

De vez em quando alguém precisa mandar uma criança parar de "arengar" com o outro. Apesar de estar na boca dos cearenses, essa palavra vem de muito longe
09:00 | Jul. 12, 2020
Autor Leonardo Igor
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Leonardo Igor Repórter do O POVO Online
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Tipo Notícia

Fora do Ceará, um cearense talvez precise explicar a que se refere se disser que uma pessoa está arengando com outra, ou mandar que interrompam esta arenga ou mesmo se apontar que este menino gosta de arengar com os outros. Mas, afinal, onde foram os cearenses buscar este verbo utilizado no cearencês para designar o ato de perturbar, molestar, discutir, enredar, polemizar, fazer mexerico?

Engana-se quem atribui à palavra um uso simplesmente coloquial. O termo está dicionarizado como verbo, substantivo e até adjetivo. O dicionário Aurélio é profuso na seção dispensada ao vocábulo: quem arenga é um arengador ou um arengueiro, esta última a preferida dos cearenses. Há aqueles que adoram uma arengada, isto é, uma conversa longa, fastidiosa… um verdadeiro lenga-lenga. O glossário também cita o uso do verbo em obras como o clássico Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos, bem como em Caetés, outra obra regionalista do autor.

Mas é na descrição do verbo arengar que o dicionário Aurélio começa a aproximar o curioso do mistério da origem dessa palavra. É que arengar, definido como um discursar agressivo ou enfadonho, tem uma variação, também verbo, aceita formalmente: arenguear. Esta última é uma derivação descendente do espanhol. Conhecida a influência espanhola na América Latina devido o período de colonização e mesmo a proximidade e relação histórica da Espanha com Portugal, não chega a ser surpresa encontrar uma variação do idioma castelhano no português. A origem de arengar está mesmo do outro lado do Oceano Atlântico. Porém, seu nascimento também está para lá da Península Ibérica.

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Ao lado da Espanha está a França, que dominou a península sob o regime de Napoleão Bonarte. Historicamente, os dois países mantêm um intenso intercâmbio cultural. Em seu léxico antigo, os franceses têm os termos harangue e haranguer, respectivamente traduzidos para o português como arenga e arengar. Os significados dos vocábulos também batem com o verbo francês haranguer designando o ato de discursar agressiva ou longamente, e harangue significando discurso agressivo. Também estas duas palavras os franceses herdaram de um termo ainda mais antigo, medieval, o arenge. Em uma tradução aproximada, arenge é um desafio

No inglês, um idioma do ramo germânico ocidental, os rings, na acepção antiga, eram justamente espaços circulares em que aconteciam debates. Hoje, por exemplo, a palavra ainda denomina um espaço de confronto, os ringues onde ocorrem as lutas de boxe. Afinal, o arenge que veio de rings, que terminou como harengue até chegar ao arengar, nasceu aonde?

“Indubitavelmente, a origem é germânica. Quando o Império Romano caiu, ele foi invadido pelas tribos germânicas. Toda a Itália, a França, a Espanha, a Catalunha na fronteira com a França. Esse espraiamento [da palavra] vem dos germânicos”, revela o professor de língua portuguesa e filologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Josenir Alcântara. A raiz do termo vem especificamente do gótico, um idioma germânico antigo. Era falado principalmente entre os visigodos e ostrogodos. Originários de regiões muito frias, pouco propícias para a agricultura, as tribos sobreviviam de pesca e guerras, invadindo outros territórios.

 

Três reis dos visigodos, povo germânico que falava o gótico
Três reis dos visigodos, povo germânico que falava o gótico (Foto: Códice Albeldense)

Devido à estrutura social ligada à atividade militar, eram bastante comuns as reuniões de exército em que os grupos se reuniam para discutir. Nestes encontros, se debatiam as invasões, as estratégias, a partilha dos tesouros e, naturalmente, a temperatura da discussão ficava elevada. Eram discursos agressivos, por vezes longos, em que se defendia seu ponto e atacava o adversário. Ali adversários se desafiavam com palavras. A estes encontros chamavam harihrings."Quando eles [germânicos] entraram nos territórios que pertenciam ao Império Romano, fizeram assimilar a cultura, deixaram alguns salpicos de palavras”, esclarece Josenir Alcântara.

“O fato de ela [a palavra arengar] se concentrar mais no Nordeste e notadamente no Ceará, menos no Sul e Sudeste, tem a ver com os primeiros portugueses que vieram para cá. O dicionário etimológico do Corominas, autor catalão, o português que veio para cá [Nordeste] predomina o povo galego”, pontua o professor Alcântara. Este grupo vive entre Portugal e Espanha e fala o idioma galego, uma língua de origem românica, derivado do latim, que muitos creditam como precedente do português. Ainda que pareça um vocábulo muito cearense, é possível encontrar os termos arenga e o arengar em outros recantos do Brasil. Em lugares de Pernambuco e do Piauí, a expressão arenga de mulher simboliza uma garoa, uma chuva fina. No Rio Grande do Sul, arengar é o cavalo não se deixar montar. Mas arengueiro mesmo, muitos só vão conhecer por aqui.


Não é cearencês, mas falamos também


-Encrenca
Vem do iídiche, idioma nascido da mistura da língua germânica com a hebraica e termos eslavos. Falado principalmente por judeus na Europa a partir da Idade Média. Entre o século XIX e XX, muitas judias do Leste Europeu foram trazidas para o Brasil e postas para trabalhar, a força, em zonas de prostituição do Rio de Janeiro e de São Paulo. Com a profusão de doenças sexualmente transmissíveis na época e os parcos métodos de proteção, estas mulheres diziam, em iídiche, Ikh hob mit kein krenk (“Não tenho doenças). É da modificação desse kein krenk, ao longo dos anos, que nasce “encrenca”.

 

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