Memórias de dilúvios que marcaram a Bahia: 'terror de ver a água levar tudo'

No Natal de 1989, famílias baianas também passaram as festividades quase submersos

Quando a natureza quer passar, não há força humana que possa contra ela. À beira dos rios que enchem de chuva e afundam cidades, existem famílias que aprenderam isso com a água no pescoço. Elas não esquecem. Em 1968, Odete Guilherme, 69 anos, lembra que nadou para sobreviver, em Itamaraju, no sul da Bahia. “Agora eu vejo nas ruas o eu tinha visto mocinha... vejo pior”, descreve a aposentada.

A história das enchentes na Bahia é de gente que perdeu para a água. Os números registrados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram que as últimas enchentes entre o sul e o sudoeste da Bahia foram as maiores desde 1961, mas não foram as únicas que desabrigaram milhares de pessoas. Já são 91 mil desabrigados e 629 mil afetados, segundo o Governo da Bahia.

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A partir dos dados de cinco pluviômetros em funcionamento no sul da Bahia - o restante está com manutenção afetada -, o Inmet mostra volumes de chuva que chegaram perto ou ultrapassaram a quantidade média registrada neste mês (389 mm) no sul e sudoeste do estado. Em dezembro de 1989, 489,6 milímetros de água caíram sobre Guaratinga - 71 a mais do que foi registrado neste mês na cidade.

Aquele fim dos anos 80 foi de enchentes causadas por chuva. Em dezembro de 1989, o mais chuvoso até então, com 498 milímetros registrados, 100 mil pessoas residentes em 112 cidades baianas, ficaram desabrigadas. No Natal, moradores de Santo Amaro e Cachoeira, no Recôncavo, estavam quase submersos pela enchente que ocorria desde o dia 20 de dezembro - algo semelhante ao que famílias vivenciaram neste ano.

 

Recôncavo baiano em 1989
Recôncavo baiano em 1989 (Foto: Arquivo Correio)

 

São histórias que se repetem e traçam destinos: a família de Odete, a aposentada de Itamaraju, ficou desabrigada por dois anos, vivendo de favor.

“Quando compramos outra casa, meu pai escolheu no alto. Ele não tinha terror de ver a água levar tudo”, conta ela.

O mesmo terror que hoje que paira no ar das 136 cidades em estado de emergência. “Graças a Deus, dessa vez não tive prejuízo. Amanheci o dia rezando, com a água no meio fio”.

A cidade de Itamaraju, na série histórica, teve o dezembro mais chuvoso. Foram 769,8 milímetros, cinco vezes mais que o esperado. A tragédia no sul da Bahia é considerada a maior que já ocorreu no estado.

Segundo o Inmet, três fenômenos climáticos contribuíram para ela - as chamadas Zona de Convergência do Atlântico Sul (Zcas), mais esperadas para o sudeste brasileiro, o fenômeno La Niña, responsável pelo resfriamento do mar do Oceano Pacífico, e o aumento da temperatura da superfície do Atlântico Sul.

Nem todos os municípios possuíam aparelhos que medem a quantidade de chuva num lugar (pluviômetros), no passado, o que impede comparações e mapeamentos detalhados. Segundo o site MetSul, especializado em meteorologia, em nenhuma área do planeta choveu tanto, no último mês, como na Bahia.

 

Em 1979,  enchente em Bom Jesus da Lapa
Em 1979, enchente em Bom Jesus da Lapa (Foto: Carlos Catela/Arquivo CORREIO)

 

Por que a previsão do tempo falha?


Como Bom Jesus da Lapa está num declive, é esperado que a chuva se acumule nas áreas mais baixas. Era início de fevereiro 1979 quando a enchente do Rio São Francisco levou à previsão de que a cidade acabaria. A vacinação foi prejudicada e o risco de febre tifoide assustava. As enchentes de dezembro deste ano também geraram perdas de medicamentos e vacinas.

Ninguém chegava ou saía em Bom Jesus, depois da enchente, senão de barco ou avião. A aposentada Ana Magalhães, 71, lembra que, todas as manhãs, as pessoas iam para a beira do rio. “O pessoal ficava na expectativa. Nós tínhamos uma roça que foi toda levada pelo rio”, conta. Não havia, à época, coleta de dados de chuva na cidade, que volta a viver estragos causados pela chuva. 

Os períodos chuvosos da Bahia variam a depender da região. No centro-oeste, por exemplo, o clima é semiárido, com longos períodos de estiagem. O verão, no entanto, é mais chuvoso. Na Chapada Diamantina, o verão também é mais úmido e, na primavera, as chuvas aparecem de vez em quando. Já no centro-leste, dezembro é mês de mais escassez, com período de chuvas entre março e julho.

“De modo geral, as áreas costeiras são aquelas onde cai maior quantidade de chuva, pois há favorecimento da entrada de umidade ao longo da costa”, explica Mauro Bernasconi, metereologista do Instituto Do Meio Ambiente E Recursos Hídricos (Inema).

O por quê de, neste dezembro, ter chovido mais que a média não é algo totalmente conhecido. Em 2020, o La Niña já estava sobre a Bahia. Mas as enchentes não aconteceram. A diferença pode ser, diz Bernasconi, a temperatura mais elevada da superfície do Atlântico Sul, que contribui para ocorrência de grandes volumes de chuvas.

 

Bahia teve dezembro mais chuvoso do mundo
Bahia teve dezembro mais chuvoso do mundo (Foto: Mapa: MetSul Meteorologia)

 

Acontece que prever chuva, a longo prazo, é querer alcançar a natureza - impossível. As previsões do tempo são feitas a partir de fórmulas físicas e matemáticas, com base na condição inicial do tempo.

“Criamos modelos para tentar ver o que vai acontecer na natureza, mas a natureza nunca é fechada. A condição inicial perfeita não existe”, diferencia Ana Clara Marques, meteorologista do Climatempo, que trabalha com previsões meteorológicas.

A verdade é que a atmosfera é caótica. E quem a adjetiva dessa forma é a Meteorologia. Qualquer variação na atmosfera produz um efeito diferente do previsto. As chuvas no sul da Bahia, por exemplo, eram previstas. Mas não da forma como caíram.

“Prever eventos 4, 5 vezes acima da normalidade é complicado. Existem fórmulas para diminuir os erros, mas o extremo não pode ser previsto”, afirma Ana Clara.

Há três sistemas utilizados para que os meteorologistas tracem fórmulas e forneçam as previsões do tempo - satélites, que capturam a temperatura do topo das nuvens, radares, que identificam gotas de chuvas nas nuvens, e pluviômetros, os aparelhos que medem a quantidade de chuva.

“Conseguimos acertar uma previsão do tempo mais robusta em dois, três dias. Daí para frente estimamos o período do dia que chove. Passou de sete dias, fica mais incerto”, explica a meteorologista do Climatempo.

O que a natureza pode ensinar?

 

Em dezembro de 1967, o empresário José Orleans, 80, conheceu o significado de terror. Hoje, de frente para uma das ruas alagadas de Itabuna, vem a memória do passado em que precisou se lançar na correnteza. “Saímos eu e outras pessoas nadando, com a água no pescoço, até chegar na terra”.

Ele considera aquele o dia da quase morte. Agora, vê da janela o movimento para recuperar a vida. “Acredito que agora o terror seja pior”. Não existia coleta pluviométrica naquele ano.

Mas, desde então, o tempo mudou. Para o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o meteorologista Pedro Regoto analisou dados do Inmet que mostraram um Nordeste mais seco desde 1961.

A análise mostrou que, por década, a chuva acumulada diminuiu 150 milímetros. “Mas existem alguns pontos que tiveram aumento de extremos de chuva”, pontua. Dois deles foram o sul e sudoeste da Bahia, mas no outono. Foram cinco dias a mais de chuva extrema, por década.

“É difícil batermos o martelo sobre mudanças históricas. É algo que carecemos um pouco. Você pode detectar a mudança, no contexto de mudanças climáticas globais, mas não saber a causa”, diz.

As chuvas mudam e afetam tanto a vida humana por questões históricas e, sempre eles, os problemas de infraestrutura. As cidades, desde a antiguidade, se estruturaram à beira dos rios, que fornecem água, um recurso essencial.

“As cheias sempre foram um problema para cidades próximas dos rios. Principalmente porque muitas cidades cresceram sem planejamento. Em poucos anos, algumas dobraram de tamanho”, cita Ernesto Carvalho, doutor em Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professor da Unijorge.

O que ocorre depois de grandes enchentes, acredita ele, é o que denuncia a falta de infraestrutura. “Não dá para dizer que tudo [na história] foi falta de infraestrutura. Agora, num desastre, são evidenciadas as falhas de planejamento”. Entre elas: os erros de um sistema de drenagem e de saúde, lixão a céu aberto, habitações em áreas de risco, como encostas sem contenção, e falta de planos de socorro às vítimas.

Para o urbanista, mais importante que determinar causas é aprender com os erros em evidência. A natureza pode ser uma professora, mas só para quem está disposto a escutar.

 

Do Correio 24h para a Rede Nordeste

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