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Referendo sobre proibição do comércio de armas no Brasil completa 15 anos

Após 15 anos do referendo, em meio ao mandato do presidente Jair Bolsonaro, a quantidade de armas passa por um aumento exponencial
15:30 | Out. 23, 2020
Autor Leonardo Igor
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Leonardo Igor Repórter do O POVO Online
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Tipo Notícia

“O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”

Foi a esta pergunta que 95 milhões de brasileiros compareceram às urnas para responder sim ou não, no domingo 23 de outubro de 2005. Na ocasião, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, a maioria dos eleitores, 59 milhões, votaram pelo não, o comércio de armas de fogo e munição não deveria ser proibido no Brasil.

Mais de 26 milhões de eleitores não foram votar. No Norte e Nordeste, o índice de abstenção foi maior que nas demais regiões. Ainda assim, o não venceu em todas as unidades federativas. O Rio Grande do Sul teve a maior porcentagem de votos a favor do comércio de armas, 86,86% votaram contra o desarmamento. Na outra ponta, o estado com o menor número de votos a favor da venda de armas foi Pernambuco, com 54,38%.

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O Ceará foi o segundo estado com o menor número de votos favoráveis ao comércio destes artefatos, com apenas 54,70% dos cearenses dizendo não à proibição - aqui, 45% disseram sim. Dos 184 municípios, o sim venceu em 42. Em Fortaleza, prevaleceu o não com 55% dos votos. Aiuaba, Altaneira, Campos Sales, Iracema, Itapiúna, Potengi, Salitre e Umari foram as cidades com maior percentual de apoio às armas, todas com 70% ou mais dos votos pelo não.

 

Na urna, a pergunta a ser respondida era: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?"
Na urna, a pergunta a ser respondida era: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?" (Foto: Lia de paula, em 23/10/2005)

 

Passados 15 anos do resultado nas urnas, ainda paira sobre o evento certa confusão. A despeito de toda a campanha de esclarecimento do que estava sendo votado, não é difícil encontrar quem acredite ter votado, nas urnas, contra ou a favor da lei 10.826/2003, conhecida como o Estatuto do Desarmamento.

Na verdade, o que estava em jogo era apenas um pedaço da lei, o artigo 35, que dizia o seguinte: "É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas". E, no parágrafo primeiro, indicava: “Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”.

Após a vitória do não na consulta popular, o artigo 35 foi excluído e o comércio de armas e munição seguiu legal no Brasil, assim como era antes. Além deste artigo, o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003 no Congresso Nacional e sancionado pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, não prevê o encerramento deste tipo de comércio no país. No Brasil, o comércio de armas não foi interrompido, continua legal e qualquer pessoa que cumpra os requisitos exigidos na lei pode adquirir uma arma.

Sendo assim, o que o Estatuto do Desarmamento faz? Ele estabelece regras mais restritivas para quem pode ter uma arma, quem pode andar com uma arma e que tipos de armas civis podem possuir. Há também um endurecimento das penas de prisão para quem for pego com porte ilegal ou armas não registradas. Quem estiver com arma de uso restrito (aquelas permitidas apenas a agentes de segurança), pode pegar até 12 anos de cadeia, a mesma pena de quem praticar o comércio ilegal de armas. O tráfico internacional destes objetos é punido ainda mais severamente, são 16 anos.

 

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A partir do Estatuto, teve início a Campanha do Desarmamento, pela qual o governo paga a quem entregar sua arma à Polícia Federal. Em junho de 2005, menos de dois anos após a sanção da lei, mais de 360 mil armas haviam sido entregues espontaneamente em todo o país, conforme o jornal O GLOBO. À época,  O POVO apontou que, no Ceará, foram 23.417 armas entregues às polícias voluntariamente.

Quando outubro de 2005 se aproximava, houve uma explosão de compra de armas no País, uma verdadeira corrida armamentistas de muitos que acreditavam que o sim venceria no referendo. No entanto, o temor não se confirmou, e no 23 de outubro, há 15 anos, 63,68% dos eleitores optaram pelo não à proibição do comércio de armas e munição no Brasil, contra 36,11% que escolherem o sim.

 

Cobertura do jornal O POVO

Capa do jornal O POVO no dia seguinte ao resultado do referendo sobre proibição do comércio de armas no Brasil
Capa do jornal O POVO no dia seguinte ao resultado do referendo sobre proibição do comércio de armas no Brasil (Foto: O POVO.doc)

 

No 24 de outubro, dia seguinte à realização do referendo, O POVO trouxe o resultado na capa e todo o conteúdo acerca da votação em um caderno especial de 14 páginas, chamado Democracia Participativa. A cobertura abrangia o processo consultivo em Fortaleza, Sobral, cidades como Uruburetama, além do Cariri.

Nas páginas do jornal, várias análises, depoimentos, reportagens que contavam os resultados folgados do não no Ceará e no País, vivendo o segundo ano do primeiro governo Lula. O presidente, por sinal, é destaque de uma das páginas do caderno, no qual é destacado o voto resignado do petista, já esperando a derrota do sim.

 

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Na mesma página, o então governador do Ceará, Lúcio Alcântara, é destacado votando com o neto. Alcântara, do PSDB, era eleitor declarado do sim, a favor da proibição do comércio de armas e munição no País. A prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins, também compareceu às urnas pelo sim, assim como a então senadora pelo Ceará Patrícia Saboya.

Em Uruburetama, o jornal destaca o forte movimento a favor da proibição das armas. Já no Cariri, a surpresa é a tranquilidade com que tudo ocorreu, “ao contrário de eleições comuns, durante o referendo, no Cariri não houve boca de urna, transporte de eleitores e agressões”. Há também o movimento da Igreja Católica a favor da proibição, que mobilizou bispos e freiras a votar, como é destaque na página 12 do caderno especial.

 

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O que é necessário para ter armas, segundo o Estatuto

Para ter posse e porte de armas no Brasil, são necessárias duas autorizações distintas, com requisitos próprios.

Para se ter uma arma legalmente no Brasil, isto é, para se ter a posse da arma, o Estatuto prevê o cumprimento dos seguintes requisitos:

- Obrigatoriedade de cursos para manejar a arma;
- Ter ao menos 25 anos;
- Ter ocupação lícita e residência;
- Não estar respondendo a inquérito policial ou processo criminal;
- Não ter antecedentes criminais nas justiças Federal, Estadual (incluindo juizados), Militar e Eleitoral;
- Ter efetiva necessidade de ter a arma.

Quem quer ter o documento de porte, isto é, para transportar a arma, precisa comprovar “a efetiva necessidade”. Isto pode ser feito através de justificativas como ameaça à integridade ou o exercício de profissões de risco, como agentes de segurança, funcionários de empresas de segurança privada, membros do Poder Judiciário e membros do Ministério Público. Além disso, é necessário fazer um teste de porte, que verifica se o indivíduo é violento, tem controle emocional, etc; para avaliar se a pessoa é apta a carregar a arma.


Alterações no Estatuto, Bolsonaro e o debate das armas

Desde o início do seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro já tomou mais de 20 medidas, entre decretos, portarias e alterações administrativas, que flexibilizam as regras do Estatuto do Desarmamento. Logo em 2019, Bolsonaro ampliou o número de profissões que poderiam ter o porte de armas, entre elas, advogados e jornalistas.

 

Desde o início do mandato, Bolsonaro tomou mais de 20 medidas para flexibilizar a aquisição de armas legalmente. A última foi em agosto de 2020
Desde o início do mandato, Bolsonaro tomou mais de 20 medidas para flexibilizar a aquisição de armas legalmente. A última foi em agosto de 2020 (Foto: Carolina Antunes/PR)

 

A causa do porte de armas para advogados, por sinal, é uma demanda de setores de Ordem dos Advogados do Brasil. Antenor Sousa Júnior, da Comissão Especial de Estudos pelo Porte de Armas da OAB, defende a isonomia entre a sua categoria, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. Isto é, que advogados também possam andar armados.

“O que a comissão defende é essa equiparação, é mais a questão legal, de isolamento. O porte de arma de fogo será uma opção ao profissional”, explica Antenor, indicando que a demanda se justifica, além do cerne legal, pelo aumento da violência contra os advogados. “A gente percebe que há um aumento da agressão. Esse ano, a OAB ficou fazer um levantamento oficial do número de advogados que foram vítimas de violência no escritório, no fórum, em qualquer situação”, pontua.

“Nosso ordenamento jurídico tenta desestimular o porte e a posse da arma de fogo. Mas isso não atinge aquele que quer cometer crime, o bandido não está preocupado se a pena é baixa, é alta, se é crime hediondo”, defende. Quanto à capacidade de um indivíduo armado defender-se de um agente que ponha sua integridade em risco, ele é categórico: “O que vai para imprensa, o que vai para delegacia, o que vai para o fórum, é o que dá errado. O que dá certo nunca vai. O indivíduo tem a premissa do Estado de ser a primeira fronteira contra uma violência, de uma iniquidade contra si. Muitas vezes a imprensa milita nesta área, no sentido do desarmamento”, diz, elencando que, na maioria das vezes, quem tem arma, consegue escapar da situação temerária sem que isso seja publicizado.

 

Mortes violentas intencionais no Rio caem 13% no ano, diz ISP
Mortes violentas intencionais no Rio caem 13% no ano, diz ISP (Foto: )

 

Das alterações feitas por Bolsonaro, muitas caíram e outras continuam. Não foi aprovado um projeto de lei, que tornariam permanentes as mudanças, tudo ocorreu por meio de decretos - que precisam ser validados pelo Congresso - e por meio de atos normativos, que alteram regras da Polícia Federal (responsável por analisar o pedido de posse ou porte de arma do civil).

Veja alguns pontos que mudaram:

- A comprovação de “efetiva necessidade” de ter uma arma, que devia ser feita com documentos, foi flexibilizada e agora pode ser uma autodeclaração;
- A validade do registro de armas foi ampliada de 5 de para 10 anos;
- Agora, cada cidadão pode ter até quatro armas, observando os parâmetros. Dependendo da quantidade de propriedades e circunstância, o número pode ser ainda maior;
- Proprietários rurais podem andar armados por toda a propriedade (antes, era somente em casa)
Facilitação da importação de armas.


Entre os maiores beneficiados com as outras mudanças inseridas na legislação estão os chamados CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), que possuem um regulamento diferente para acesso às armas. Seu registro de porte e posse, por exemplo, é feito pelo Exército. O tipo de armas a que têm acesso também é mais amplo.

O projeto de lei apresentado por Bolsonaro, em análise no Congresso, estabeleceria ainda outras mudanças, como a redução da idade mínima para ter arma de 25 para 21 anos e a possibilidade de regularizar a posse de armas de fogo sem comprovação de capacidade técnica e sem laudo psicológico.

Civis têm mais armas que policiais

 

FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-05-2020: Policiais Militares de bicicleta. Orla de Fortaleza, Praia de Iracema, em epocas de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-05-2020: Policiais Militares de bicicleta. Orla de Fortaleza, Praia de Iracema, em epocas de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO) (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

No Brasil, há dois tipos de registro de armas de fogo. Um é feito pelo Exército, compilado no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas de Fogo (Sigma), que reúne dados das Forças Armadas, policiais militares e os CACs. O outro sistema, controlado pela Polícia Federal, é o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Ele reúne os registros de armas de fogo da própria PF, da Polícia Rodoviária Federal, dos membros do Judiciário e do Ministério Público, das polícias civis e do cidadão com direito a posse/porte.

Entre 2019 e 2020, houve aumento de 120% em registro de armas pelos CACs. A quantidade de autorizações saltou de 225 mil no ano passado para 496 mil até agosto de 2020. Os policiais e bombeiros militares têm 526 mil armas registradas, isto é, entre os agentes de segurança pública e os civis, há diferença de apenas 30 mil armas - entre as registradas legalmente. Como há 1,1 milhão de armas no Sigma, quase metade de todas as registradas pelos militares está na posse de civis.

Os dados são Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, divulgado nesta semana. A publicação traz um balanço sobre vários aspectos da segurança no Brasil, entre elas, as armas de fogo. “A gente tem uma relação com armas de fogo, é uma relação antiga na cultura brasileira. O Brasil é violento independente da arma de fogo. O Brasil tem dificuldade em resolver problemas de maneira pacífica. Há a dificuldade das instituições serem consolidadas e contínuas no brasil, mas também as armas de fogo são muito presentes”, analisa Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Entre os registros que incluem civis, organizados pelo Sinarm, houve variação de 65% entre 2017 e 2019 no crescimento do número de armas legais no Brasil. O número saltou de 637 mil para 1,056 milhão em dois anos. Do total de um milhão de armas no Sinarm, mais de 370 mil estão nas mãos de civis. Para se ter uma ideia, as empresas de segurança têm 193 mil armas. Combinando estas empresas (dados do Sinarm) e as polícias e bombeiros militares (dados do Sigma), ainda há uma diferença de 140 mil armas em comparação aos civis.


“O Anuário desse ano conta que o número de armas de fogo vendidas no brasil pelo número de registros na Polícia Federal e do Exército brasileiro aumentaram de maneira estrondosa. Há alguns pontos de atenção como o Distrito Federal. Hoje, no DF, você tem uma arma a cada 11 pessoas. De modo geral, o brasileiro tem se armado e se armado bastante”, aponta Ivan Marques. E completa: “O número de CACs com registro de armas no Brasil é quase igual ao número de armas de polícias e bombeiros militares em todo o Brasil. Tem uma classe com igualdade de poder de fogo com as polícias e forças de segurança no Brasil”.

 

Tratamento de arma feito pelo Exército, que mantém sistema de registro de armas Sigma
Tratamento de arma feito pelo Exército, que mantém sistema de registro de armas Sigma (Foto: CComSEx)

 

Como os decretos de flexibilização do presidente Jair Bolsonaro vêm a partir de 2019, há um número ainda a ser descoberto da mudança entre 2019 e 2020. Para Antenor Sousa, da comissão de Estudos do Porte de Armas da OAB, mesmo com as mudanças promovidas pelo mandatário, não é fácil ter uma arma no Brasil. “É muito difícil. E a dificuldade passa também pela questão financeira. Se você quiser adquirir uma arma de fogo hoje e não tiver feito ainda nenhum movimento para isso, você vai gastar aproximadamente uns 120 dias e vai gastar, se quiser adquirir uma arma de fabricação nacional, em torno de R$ 8 mil, entre a aquisição da arma de fogo, curso de tiro, pagamento de todas as taxas”, explica.

Já Ivan Marques aponta que as medidas de facilitação e promoção das armas têm alterado não só a percepção policial sobre a necessidade de apreender armas, como pode elevar a violência no País, que segundo o Anuário de Segurança Pública, teve 72,5% das mortes violentas intencionais em 2019 causadas por armas de fogo. “O presidente Bolsonaro promove uma série de facilidades. Pelo menos uma parcela dessas armas legais, que isso historicamente se comprova, vai parar nas mãos dos criminosos, seja por perda, seja por furto, seja por pessoas más intencionadas que compraram uma arma para colocar na mão do criminosos. O Brasil ainda não está sofrendo os efeitos dessas medidas do Bolsonaro, mas com certeza vai ser sentido”, alerta.


Dados

Há 2,1 milhões de registros ativos de armas legais no Brasil

No Ceará, são mais de 17 mil armas registradas legalmente

105 mil armas foram apreendidas pelas polícias estaduais em 2019, uma redução de 0,3% em comparação a 2018

Em 2019, o Exército brasileiro destruiu 125 mil armas de fogo ilegais apreendidas e sem imprestáveis para uso nas forças de segurança

Antecedentes

O Estatuto do Desarmamento foi um marco na restrição ao porte e à posse de armas no Brasil, mas não foi o primeiro nesse sentido. Desde o final dos anos de 1990, o assunto da restrição às armas era debatido nos corredores de Brasília e nas páginas dos jornais. Em 20 de fevereiro de 1997, com a lei 9.437, o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a primeira lei que endureceu os requisitos para a posse de armas e tornou o porte ilegal um crime inafiançável, com punição entre um a quatro anos. Seis anos depois, o estatuto entraria em vigor.

 

Eleitores nas filas para votar no referendo de 2005 no Naútico Atlético Cearense (1ª zona)
Eleitores nas filas para votar no referendo de 2005 no Naútico Atlético Cearense (1ª zona) (Foto: Fco Fontenele/O POVO)

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