Participamos do

Após comentário racista, conta é banida por 15 dias de streaming de games: "Tem que voltar pra senzala"

Como outra consequência, todas as contas do canal "Mil Grau" tiveram de desvincular o nome da marca "Xbox" de usuários, redes sociais e trabalho
22:07 | Jun. 03, 2020
Autor Matheus Facundo
Foto do autor
Matheus Facundo Repórter do portal O POVO Online
Ver perfil do autor
Tipo Notícia

A Mil Grau, conta de stream (transmissão) de comentários e experiências com jogos do videogame Xbox One, foi banida por 15 dias da Twitch, comunidade global de entretenimento, devido a denúncias de ataque racista de um dos integrantes. Durante transmissão nesta semana, um dos comentadores afirmou que negros "nunca deveria ter deixado de ser escravos" e deveriam "voltar para a senzala".

Como consequência e após subida de hashtags e intervenções de gamers negros, como o carioca Ricardo Regis, o canal foi impedido de realizar transmissões na plataforma. "É a cultura negra essa? Então é meio bosta mesmo", começou um comentador, referindo-se a um personagem. "É. Tem que voltar pra senzala tudo mesmo. Nunca deveria ter deixado de ser escravo, se é para ser essa aí a cultura do cara", respondeu outro. De acordo com o Mil Grau, o canal preza pelo tratamento e igualitário e "principalmente pela liberdade de expressão" e afirma que memes e vídeos editados estão sendo divulgados fora de contexto.

Junto a outros colegas e jornalistas negros do meio, Ricardo, que é editor de vídeos, criou a hashtag #TwichApoiaRacista no Twitter e ganhou apoio na rede social. Eles subiram uma transmissão no Twitch em fundo preto, em apoio ao movimento "Vidas Negras Importam", mas também devido às diretrizes da plataforma não permitirem vídeos com o fundo preto. Mas, até o momento, a comunidade global de streams não se posicionou oficialmente, se limitando a publicar em seu Twitter apoio ao movimento negro e maneiras de ajudar.

"Eles finalmente cederam, mas foi depois de muito esforço. Ao que parece o canal foi banido, mas só por 15 dias. Não há resposta sobre o caso e isso me parece extremamente absurdo. Eles ficaram cientes do problema e mesmo assim não falaram nada e ao invés disso foram lá e postaram 'BlackLivesMatter'. Mas o que você vai fazer para apoiar o movimento?", cobra Regis.

 

O Mil Grau emitiu um nota oficial via Twitter na noite desta quarta-feira, 3. De acordo com o texto, a equipe afirma "jamais" ter cometido atos de racismo ou discriminação. Segundo a nota, o canal é para maiores de 18 anos e conta com brincadeiras e piadas conhecidas como "humor negro", "feita também por vários humoristas pelo mundo". "Sempre tratamos e convidamos espectadores para nossas transmissões de jogatinas sem nos preocupar com cor, crença, gênero ou classe social. Algo inclusive raramente visto no mundo dos streamers", pontua a administração.

Outro desdobramento do caso foi o posicionamento da Xbox Brasil, ligada à empresa de videogames e eletrônicos pertencente à Microsoft. Todas as contas do Mil Grau — outrora "Xbox Mil Grau" —, tiveram de desvincular o nome da marca de seus usuários e redes sociais. Decisão foi anunciada pelo perfil da Xbox no Twitter nessa terça-feira, 2. 

O canal, da maneira que alcançou a fama, se chamava "XBox Mil Grau". O POVO enviou e-mail demandando informações sobre e posicionamento do Twitch, mas, até o momento da publicação desta matéria, não recebeu respostas.

Estopim do caso

O vídeo do comentário racista viralizou em meio aos movimentos contra o racismo e a violência policial contra pessoas negras explodindo nos Estados Unidos e ganhando notoriedade de debate no mundo, mas, de acordo com Ricardo Regis esse não foi um ataque isolado. Data de anos. Mas, o estopim foi na semana passada, quando após ataques  a um jornalista negro que se especializou em jogos eletrônicos, Gustavo Queiroga, o carioca resolveu se mobilizar. 

"Ele (Gustavo Queiroga) fez uma postagem comemorando que no jogo que ele estava jogando foi dada a possibilidade de escolher entre dois personagens negros. Ele foi atacado pelo pessoal do Xbox Mil Grau. Eu me sensibilizei porque a gente que trabalha com videogame e é negro sabe que somos minoria", conta.

No último dia 1º, já em meio as pedidos de resposta, a Xbox publicou que "Nos mantemos firmes em nossos valores como respeito, diversidade e inclusão. A Microsoft tem como valores fundamentais: respeito, diversidade e inclusão, que são pilares de nossa cultura. Repudiamos todo e quaisquer atos de discriminação e violência que firam esses princípios".

Após ter tomado a frente na defesa do jornalista de games, o editor de vídeo conta que o "atacaram por algumas semanas e foi a partir daí que as coisas começaram a escalonar. Eu não retraí e não fiquei com medo e dali pra frente eles passaram a fazer múltiplos ataques racistas".

Durante outra live no Twitch, Ricardo conta que integrantes do Mil Grau proferiram ataques transfóbicos. Segundo ele relata, uma pessoa afirmou que espancaria o filho de um outro gamer por ele ser um homem trans. "A partir daquele momento eu percebi que o limite havia sido ultrapassado e eu passei a fazer mais pressão no Twitter e na Twitch"

Racismo na comunidade gamer

De acordo com o Ricardo Regis, de 31 anos, o racismo e a o ambiente tóxico e conservador da comunidade gamer o levou a sair do stream de games profissionalmente. Ele criou, em 2017, o Nautilus, um canal que traz debates de raça e de política. "Tratando games, especificamente, com respeito e maturidade", diz a descrição da conta no Twitter. Mas, o que o fez iniciar o trabalho e ver a sua idealização tomar forma e visibilidade, foi o mesmo que o afastou, em janeiro deste ano, depois de três anos escutando ataques racistas, presenciando e sentindo a discriminação na pele, segundo relata.

"Quando eu comecei o Nautilus foi para ter uma visão diferente da maioria dos perfis. Eu larguei porque não é fácil trabalhar nesse meio. Você não se sente parte e quando é para você se sentir parte basicamente você é convidado só para falar de negritude. Não tenho problema algum com o assunto, mas eu pensava 'cara, eu quero ser que nem vocês e falar de videogame também, por que eu não posso?'", relembra.

São poucas as pessoas e profissionais negros especializados em jogos, segundo Regis. "Acompanhar veículos de comunicação de jogos, prévias e reviews (análises) de lançamentos não é para a maioria de pessoas negras. Os videogames são muito caros e a maioria dos meus familiares mesmo acabam não conseguindo acesso a tipo de conteúdo e participando da discussão.

Sobre as polêmicas envolvendo racismo em transmissões e comentários de jogos, o carioca comemora que sua voz e a de muitos outros foram ouvidas, mesmo após diversas tentativas, mas é categórico em revelar seu descrédito na mudança de posicionamento e mentalidade dos integrantes deste mundo. "Muitas pessoas fazem vista grossa. O que fizeram foi o mínimo do mínimo. O que eles (Xbox e Twich) vão fazer para nossa comunidade?", questiona.

 

Dúvidas, Críticas e Sugestões? Fale com a gente

Tags

Os cookies nos ajudam a administrar este site. Ao usar nosso site, você concorda com nosso uso de cookies. Política de privacidade

Aceitar