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Ler o Cony

Análise do jornalista Henrique Araújo
16:50 | Jan. 06, 2018
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Tipo Notícia

Numa de suas crônicas, Luís Fernando Veríssimo admite que um dos poucos gestos que havia esboçado contra o regime militar fora arquitetar um plano, nunca realizado, de salvação da transgressora tia Lucinda, empregada como secretária num governo estadual à época da ditadura. O outro, ele conta, era comprar o jornal e ler semanalmente as crônicas de Carlos Heitor Cony no Correio da Manhã, vespertino carioca.  

[SAIBAMAIS]

Nessa época, ler o Cony era ato de resistência por si, um modo de irmanar-se na conjura contra os militares e de também fiar-se na lorota de que se combatiam regimes de força apenas com palavras. Diz Veríssimo: "Em pouco tempo aquele ato, ler o Cony, se tornou um exercício vital de oxigenação para muita gente, e a sua coluna uma espécie de cidadela intelectual em que também resistíamos, mesmo que a resistência consistisse apenas em dizer 'É isso mesmo!' a cada duas frases lidas".

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É isso mesmo. De uma hora pra outra, o Cony de romances ainda pouco lidos, considerado meio alienado pela esquerda, erguera-se nas tamancas e, batucando furiosamente atrás da máquina de escrever, ia disparando uma crônica atrás da outra, espicaçando os militares no que tinham de mais frágil: o senso de ridículo.

O resultado: Cony seria preso seis vezes no curso dos anos de chumbo, cumprindo penas de até três meses, após as quais terminou por deixar o País. Quando voltou, passou a trabalhar para a revista Manchete, de Adolfo Bloch, tido como um colaborador do regime. Para Cony, o novo emprego era uma espécie de "prisão de luxo". Daí a tornar-se persona non grata pelas esquerdas foi um pulo – o escritor responsabilizaria membros e simpatizantes do PCB por boicote ao lançamento de uma de suas obras mais poderosas, o romance Pilatos.

Antes disso, porém, houve um começo, lá pelos idos da década de 1920, quando o menino, dado por mudo, passava maus bocados nas escolas, de onde entrava e saía com ligeireza após virar alvo fácil das pilhérias dos amigos. Com a dicção frouxa, quase disléxico, trocando as letras quando falava, acabou sendo alfabetizado em casa mesmo. Coube ao pai, o jornalista Ernesto Cony Filho, eternizado no livro Quase memória, a tarefa de introduzir o rebento nas primeiras letras.

Disso veio o gosto pela palavra escrita, que passou a exercitar com frequência para não sucumbir ante as brincadeiras na rua. Desse gesto ensimesmado resultou também certa beatitude, além do interesse pela liturgia católica, que se acentuou quando começou a frequentar a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, no Rio. Ali, o garoto decidiria, anos depois, tornar-se padre, matriculando-se então no Seminário de São José, onde aprenderia francês, grego, matemática e ciências. E onde descobriria o prazer pela dúvida de Santo Agostinho mais que pela certeza beatífica.

Descrente e amuado, Cony deixaria o seminário uma década depois. Corriam os anos de 1960. Sua estreia na literatura, com o romance O ventre, dois anos antes, tinha causado surpresa – a obra fora recusada pelo corpo de jurados do prêmio bancado pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O motivo? Era muito transgressora para os padrões da época.  

Ora mais jornalista, ora mais artista, Carlos Heitor Cony foi um escritor abundante. Talvez o mais prolífico de sua geração. Certamente um dos mais importantes narradores da literatura brasileira. Desde sua estreia, produziu mais de 50 livros, distribuídos por todos os gêneros, da novela ao infanto-juvenil, da crônica ao conto, incluindo projetos de roteiros de telenovelas e traduções de clássicos universais. Ganhou os mais relevantes prêmios nacionais. Dirigiu revistas. E prometeu parar de escrever ficção, jura que ele mesmo tratou de descumprir, voltando ao romance, agora numa história sobre os desencontros com o próprio pai, cuja memória o escritor cuidava em revisitar.

Para o pesquisador Alfredo Bosi, autor de História concisa da literatura brasileira, a obra do escritor carioca define-se como uma "experiência cortante de neo-realismo psicológico, entre a representação do universo degradado da persona burguesa e a ênfase no compromisso individual perante a sociedade".

Grosso modo, é como se Clarice Lispector encontrasse Jorge Amado, o individual e o coletivo amalgamados de tal modo nas tramas de suas histórias, sempre matizadas por uma reflexão existencialista e um desespero em face das pressões sociais. Cony era irredutivelmente sozinho – num sentido filosófico. Mas, também filosoficamente, atado a compromissos que explicavam, por exemplo, a defesa intransigente das liberdades civis durante o golpe militar. Seus livros refletiam isso: o humano fraturado, o divino inalcançável. Uma cisão insanável da alma.

Cony sempre escreveu como resposta: a prazos, a pedidos de editores, a arengas sociais e, sobretudo, às perguntas que o menino que era, mesmo aos 91 anos, ainda não conseguira responder. Havia um deus? O homem é sempre solitário? O pai é um tirano? Pra todas elas, ele deitou uma palavra certa. Ironia é supor que, até os cinco anos de idade, o escritor emudecesse "simplesmente porque não tinha nada pra falar".  

No discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, porém, Cony falou. Ao assumir a cadeira de nº 3, em março de 2000, ele diria, citando Machado de Assis: "A vida não é completamente boa nem completamente má".

Nonagenário, o escritor se despediu exatamente como queria: "Anarquista entristecido, humilde e inofensivo". Uma voz potente na literatura. Lírica. E melancolicamente sozinha.

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