Nasce uma farmácia

Quanto tempo leva a gestação de uma farmácia? Eu não sabia até acompanhar uma, aqui pertinho de casa, cujo desenvolvimento me vi testemunhando como um obstetra sem formação, num parto assistido depois do chá de revelação organizado pelo dono de uma construtora.

Explico. No começo não sabíamos do que se tratava, se um condomínio, um posto de gasolina, um açaizeiro ou uma concessionária. Do dia pra noite, o imóvel degradado que ficava na esquina foi abaixo, restando o terreno vazio, diante do qual a gente se interrogava mais ou menos como os hominídeos do filme do Kubrick na frente do monólito espacial: o que diabo era aquilo?

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Na segunda-feira da semana seguinte, operários sobraçavam material de construção já às 8 horas da manhã. Um deles manobrava com destreza um trator amarelo-ovo novinho, que se encarregava de cavar com seus dedos metálicos. Do buraco se ergueu uma estrutura que não era nem extensa, nem angulosa, nem complexa, nem alegre, nem curiosa, mas banal, pequena, triste, cheia de ângulos retos e anticlimática.

Era como uma caixa de sapato, só que de concreto e cercada por um vazio infinito, um lugar do qual a mente arquitetônica poderia fazer brotar qualquer coisa que pudesse animar aquele pedaço de chão do meu bairro, tão carente de opções de lazer.

Enquanto o caixote central ganhava corpo, cor e acabamento (metade branco, metade vermelho), contudo, o nada ao derredor continuava como estava: vazio. Nele se não se viam um jardim, um banco que fosse, um mato crescido dobrando-se ao vento, um gato dormindo, um bêbado largado. Como se tivesse sido pensado para ser o que era mesmo, espaço inservível à gente.

Logo descobriria: era um estacionamento. Mas se aquilo tudo era uma colônia de férias para carros, porém, o que haveria de ser o ninho de pedra fincado bem no meio da área onde antes havia funcionado um prédio abandonado que passara anos albergando moradores de rua e usuários de droga?

Lógico que era uma farmácia. A 39ª farmácia do bairro e a segunda num raio de dois quilômetros da minha casa. Eu poderia morrer de tédio, mas não por falta de opções para comprar Novalgina.

Não tenho palavras para traduzir minha tristeza. É como se esperasse ganhar um PS5 de presente de aniversário e minha mãe me desse um par de sapatos bico fino embrulhado num pacote vistoso que eu abri na frente dos convidados, sem poder esconder o constrangimento.

Também não sei quanto tempo levou pro negócio nascer, se nove meses ou nove dias, mas a impressão que tenho agora, vendo a obra pronta e me achando muito burro porque desde o começo estava na cara o que era aquilo, é de que tudo não levou mais do que poucas horas.

Como se a farmácia já estivesse à espreita, feito um fantasma. Como se o trator a houvesse parido a fórceps, resgatada do fundo da terra, algo parecido com aquelas criaturas que saem das frestas em "Guerra dos mundos" e depois passam a atacar soltando raios por ventosas horripilantes.

Como se essa estrutura fármaco-aterrorizante estivesse pronta embaixo do nosso solo, uma riqueza natural da qual os novos exploradores agora lançavam mão numa corrida do ouro para bancar uma revolução medicamentosa, a primavera da tarja preta. Como se fosse a coisa mais saudável e corriqueira destes tempos desejar um parque arborizado, calçadas bem cuidadas ou um churrasquinho na esquina, mas só receber farmácias-gremlins se multiplicando pela cidade a qualquer momento do dia ou da noite.

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