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Praticante de jiu-jitsu com câncer recebe faixa preta de professor em leito de hospital horas antes de morrer

Brasileiro Igor Araújo, ex-lutador do UFC e professor de Alain, relata momentos de superação do aluno na batalha contra um câncer de estômago
11:21 | Nov. 06, 2020
Autor Davi César
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Tipo Notícia

Ao longo dos 59 anos de vida, dentre esses, oito anos dedicados ao jiu-jitsu, o suíço Alain Mennet finalizou a luta mais difícil de todas, nesta segunda-feira, 2, quando morreu em decorrência do avanço de um câncer que começou no estômago. No entanto, mesmo debilitado, o lutador recebeu uma homenagem inesperada no leito do hospital, quando recebeu a faixa preta que o próprio mestre usava e foi graduado no mais alto nível do esporte, horas antes de partir.

Em entrevista ao O POVO, o brasileiro Igor Araújo, 39, professor de jiu-jitsu na Suíça, relatou os momentos finais de Alain, que, segundo o mestre, era um dos alunos mais esforçados que já teve.

Quando Alain Mennet iniciou nas artes marciais, passou uma temporada se dedicando aos treinos de kung fu. Entretanto, foi com o kimono de outro esporte que ele mais se identificou. Ao migrar para o jiu-jitsu, há cerca de seis anos, logo se apaixonou e passou a dedicar horas de seu dia à modalidade. Na época, o professor Igor Araújo ainda competia pelo Ultimate Fighting Championship (UFC), onde realizou quatro lutas no peso meio-médio (até 77 kg).

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Mesmo com a fisionomia magra, sem força e com lesões frequentes, como descreve o professor, Alain passou a treinar todos os dias, por vezes, até duas vezes por dia. Apesar da idade, a rotina intensa era típica de um lutador profissional. A dedicação foi tamanha que lhe rendeu um título cobiçado do esporte, ainda na faixa azul, na categoria para praticantes maiores de 56 anos, peso-pena (64 a 70kg).

"Sempre tive muito contato com ele, era uma das pessoas que mais treinavam lá. Gostava muito de jiu-jitsu mesmo e quis lutar o Campeonato Europeu de Jiu-Jitsu. Viajou (para Lisboa), perdeu peso igual um atleta profissional mesmo, fez umas lutas e ganhou. Ele levava o esporte bem a sério, até ele ter a doença", disse Igor.

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Início da doença

Alain era comunicativo e brincalhão, gostava de exibir as conquistas, seja medalhas em competições ou até mesmo a melhoria física, resultado dos treinos, conta Igor Araújo. A paixão pelo esporte trouxe o suíço para o país do mestre, após a competição. Junto com o filho, também praticante, Alain decidiu passar as férias treinando no Brasil.

Quando retornou à Europa, começou a se queixar de dores na região do estômago. Ao realizar exames, foi diagnosticado com o câncer e precisou fazer uma cirurgia para retirada de parte do órgão. Mesmo com demasiado esforço, ele fez de tudo para manter a rotina de treinamentos, alternados entre o jiu-jitsu e a musculação, mas as dores dificultavam cada vez mais as práticas.

Após a cirurgia de retirada de parte do estômago, começou a fazer quimioterapia, do tipo adjuvante, com o objetivo de destruir as células cancerígenas remanescentes e evitar o retorno da doença. "Enquanto ele fazia a quimioterapia, ele treinava todos os dias. Chegava ali, parava de treinar, ia vomitar. Mesmo com a quimioterapia, continuava treinando e sonhava em lutar o campeonato mundial (quando finalizasse o tratamento)", afirma Igor.

O professor graduou o aluno na faixa marrom depois do processo cirúrgico. "Tá aqui. Eu sei que você não vai poder treinar muito, mas tá aqui sua faixa marrom", conta como foi a conversa com o aluno. O suíço treinou até o limite imposto pela doença, mas teve complicações por conta de uma lesão na medula. Igor conta que, certo dia, Alain sofreu uma queda no hospital e lesionou várias vértebras. O acidente ocasionou perda de parte da mobilidade, Alain não conseguia mais andar ou movimentar os braços.

Mesmo distante dos tatames, tanto Igor quanto os colegas de treino, que eram considerados como família para Alain, iam visitar o colega no hospital. O brasileiro relata que, mesmo afastado, o aluno fazia questão de usar a camisa da equipe até os últimos meses de vida.

 

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Com o tempo, Alain se recuperou das lesões e readquiriu parte da movimentação, mas já não podia mais praticar qualquer esporte e seguia internado. Ao acompanhar à distância as reformas na academia, o suíço insistiu tanto para visitar o espaço novamente que conseguiu autorização médica para ir ao local.

A festa foi grande. Recepcionado pelos colegas, tirou fotos e pediu para entrar no tatame. Desta vez sem o kimono e debilitado pela condição clínica, não lutou, como queria, mas começou a fazer “fugas de quadril”, movimentação de solo específica do jiu-jitsu, o que bastou para emocionar a todos que estavam presentes. Foi o último contato de Alain com o dojô, em julho deste ano. O momento foi registrado por Igor.

 

 

Últimos meses de vida

As últimas semanas de Alain se resumiram a incômodos crescentes, provocados pela volta do câncer. Apesar da insistência da família, ele decidiu por interromper a quimioterapia. Devido à pandemia de Covid-19, a solidão também aumentou, já que as visitas de amigos passaram a ser cada vez mais limitadas.

Igor conta que, a caminho de uma aula particular, recebeu a ligação do filho de Alain afirmando que, segundo os médicos responsáveis, o pai morreria em um ou dois dias. Imediatamente, o brasileiro mudou a rota e resolveu prestar uma última homenagem.

"Eu já tinha um plano na minha cabeça de dar a faixa preta para ele assim que ele saísse do hospital. Porque essa luta que ele teve foi a mais dura de todas. Mas a situação foi piorando e na hora que o filho dele me falou isso, eu peguei minha faixa, guardei, e decidi dar minha faixa para ele", disse Igor.

A cena, contudo, não era a esperada pelo professor. Quando chegou ao hospital, o câncer já havia se alastrado para o cérebro de Alain, deixando-o inconsciente. O professor segurou a mão do aluno, fez uma oração e colocou a faixa preta na mão direita do aluno. "Ele tentou mexer o maxilar, saiu uma lágrima do olho e a mão com a faixa começou a tremer. Ele sabe que recebeu a faixa preta dele e a missão foi cumprida”.

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