Quanto mais denúncias contra o racismo, mais ele reaparece com toda a força
Por Geísa Mattos
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará
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AssineO Brasil nunca foi uma democracia racial. O livro Casa Grande&Senzala, escrito em 1933 pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, é considerado o mais importante baluarte da literatura nacional a representar a ideia de que vivíamos uma bela integração entre as raças, e que o regime escravocrata aqui tinha sido bem mais “doce” do que nos Estados Unidos, com os portugueses sendo muito mais dispostos à “miscigenação” com as negras e índias, ao contrário dos ingleses nos EUA. O autor, embora brilhante em sua escrita, assumia, no entanto, a perspectiva da elite branca dominante, minimizando todo o sofrimento impingido aos negros e negras, inclusive pelos casos de estupro e torturas físicas e psicológicas.
O mito da "democracia racial" começou a ser desmontado em termos sociológicos ainda na década de 1950, quando a UNESCO patrocinou uma série de estudos de antropólogos e sociólogos no Brasil para entender como nós aparentemente convivíamos “tão bem” com a “miscigenação racial”, enquanto no Sul dos Estados Unidos e na África do Sul prevaleciam a segregação e o ódio raciais. Naquela época, estudos como os de Florestan Fernandes e Roger Bastide, “Brancos e Negros em São Paulo”(1955, 1a ed.), baseados em estatísticas e entrevistas, já mostravam o impacto persistente do racismo tanto em termos econômicos, quanto educacionais e de oportunidades objetivas e subjetivas, como consequências da escravidão no Brasil. Outros estudos subsequentes, só confirmaram as especificidades e crueldades do racismo à brasileira.
No entanto, durante muito tempo, uma das estratégias centrais de sobrevivência ao racismo por parte dos afrodescendentes no Brasil foi o silêncio, como mostra o estudo da socióloga americana Francis Twine ("Racism in a Racial Democracy", 1998). Com seu olhar a partir do racismo nos Estados Unidos, a autora se perguntava porque os brasileiros continuavam acreditando na “democracia racial”, quando o discurso cotidiano e as práticas materiais sustentavam e naturalizavam a Supremacia Branca.
A partir dos anos 2000, as lutas do movimento negro brasileiro resultaram no estabelecimento progressivo da política de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas e em concursos públicos. O estabelecimento das cotas gerou um processo de identificação positiva com a negritude, e, após o ingresso nas universidades, o País começou uma discussão mais ampla sobre o significado de ser negro no Brasil. As redes sociais tem ajudado neste processo, especialmente quando atos racistas são flagrados por câmeras de celulares, o que tem o potencial de gerar mais indignação.
Porém, a mesma internet que possibilita a visibilidade dos casos de racismo, também torna público que o ódio racial está bem presente por aqui, como se vê no mais recente caso do jogador insultado aqui em Fortaleza. Uma rápida pesquisa no Google pode revelar que, nos últimos anos, vários casos de racismo explícito vieram à tona atingindo tanto jogadores de futebol, quanto atrizes, jornalistas de TV e pessoas comuns que sofreram ataques com base em seus fenótipos, e os divulgaram nas redes sociais.
As tensões raciais vem crescendo no mundo inteiro, como consequência dos avanços da Direita. Racismo, homofobia e ódio às mulheres são as trincheiras da Direita representada por um Trump, por exemplo, que proíbe o ingresso de muçulmanos no seu País, o que é também uma forma de racismo. O ódio aos imigrantes na Europa, especialmente de origem africana, também vem crescendo e tem se tornado comuns também ataques deste tipo a jogadores afrodescendentes, inclusive brasileiros, que atuam em times europeus.
O racismo é irracional e injustificável, mas, além de ser uma prática incorporada, também é uma ideologia, às vezes sutil e muitas vezes aberta, como tem se mostrado mais recentemente no Brasil. Práticas e discursos racistas cotidianos ferem muitos há muito tempo, e se hoje isso pode ser visto de forma mais clara e mais ampla, isso se deve paradoxalmente às conquistas devidas ao fato de ser mais denunciado. Não esperemos progressos lineares em tempos complexos. A luta tem que continuar.