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"A dona do Pedaço": uma receita surpreendente, mas nem tanto

O capítulo de estreia da novela "A dona do Pedaço", exibido nesta segunda-feira, 20, na faixa nobre da TV Globo, revelou um produto ambíguo
23:30 | Mai. 20, 2019
Autor Émerson Maranhão
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Émerson Maranhão Jornalista e realizador audiovisual
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Tipo Notícia

O capítulo de estreia da novela A dona do Pedaço, que acaba de ser exibido na faixa nobre da TV Globo, revelou um produto ambíguo. Como um prato que se vale da fusão inesperada de dois ingredientes aparentemente incombináveis, o novo folhetim propõe seduzir o espectador a partir da junção de dois elementos supostamente inconciliáveis: a trama de grande apelo popular assinada por Walcyr Carrasco e a direção sofisticadíssima e cheia de metáforas visuais e referências cinematográficas de Amora Mautner.

A inspiração em Romeu e Julieta, a mais popular das crias do bardo inglês William Shakespeare, foi explicitada didaticamente mais de uma vez, num apelo claro para conduzir o espectador pela mão trama adentro.

Pelo menos, ninguém poderá dizer que não entendeu a rivalidade entre os Matheus e os Ramirez. A sutileza, de fato, não é uma característica que Carrasco espera que seja compreendida pelo público. Na dúvida, ele sempre opta por explicitar as intenções.

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A urgência em dar conta da apresentação de metade do prólogo em um único capítulo, com direito a duas passagens de tempo, fragilizou dramaturgicamente a estreia, abrindo brechas para situações pouco verossímeis, como a constatação da paixão devastadora entre Maria da Paz (Juliana Paes) e Amadeu (Marcos Palmeira) em apenas 24 horas, ou seja, já no segundo encontro do casal. E esta certeza é tão inabalável que os move a enfrentar uma querela atávica entre suas famílias. Dá para acreditar?

Um ponto que chama atenção, especialmente, é a naturalização, no discurso, da profissão dos membros dos dois clãs. Ainda que o material de divulgação da novela os aponte como “justiceiros”, eles são, na verdade, dois bandos de pistoleiros rivais, que exercem seu ofício por dinheiro.

E esta informação é apresentada inequivocamente logo no primeiro bloco do capítulo. Essa visão “normalizante” do ato de matar é reforçada quando Ademir (Genézio de Barros), pai de Maria de Paz, volta do “serviço”, ou seja de uma execução, para degustar tranquilamente o bolo feito pela filha pequena.

Sem falar na sequência em que toda a família, inclusive as filhas menores, pratica tiro ao alvo em velas acesas no lado de fora da casa. Espero que este não seja um indicativo dos dias em que vivemos.

Ao mesmo tempo, Amora brindou a audiência da novela com enquadramentos belíssimos. E que não se esgotavam em si. Isso é muito importante. Seus planos ambicionam função dramática, não se bastam na estética pela estética, o que é digno de aplausos.

Que o diga a sequência inicial, com Maria da Paz ainda menina, em meio ao campo todo em tom pastel, usando um vestido vermelho. E na vastidão do campo, só se distinguem as flores (vermelhas) caídas, o vestido de Maria e o telhado (vermelho) da casa da família. Uma lindeza!

Um olhar atento pôde perceber, ainda, desde a primeira sequência, que a luz sempre está lá fora, na parte externa. As casas dos dois clãs são carregadas de sombra, quando não de escuridão – o que é gritado quando da prisão de Da Paz no quarto por ordem da avó, Dulce (Fernanda Montenegro).

Assim como são muitos os enquadramentos que têm janelas como mediadoras. Ou seja, vê-se através das molduras estabelecidas pelas janelas, numa alusão à metáfora corrente, quase um consenso, no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 que o vídeo seria a “nova janela para o mundo”.

Sem falar nos planos das árvores que me remetem, de imediato, ao cartaz de O Sacrifício, do cineasta russo Andrei Tarkovsky.

Em nome da verossimilhança, apenas uma ressalva. Não dá para acreditar que alguém baleado (Mateus) seja mais ágil que quem tenta lhe socorrer logo após o disparo (Maria da Paz) e, menos ainda, que todos que estavam na igreja quando na tentativa de assassinato nela permaneçam, apenas para que somente os noivos sejam mostrados na sequência do alto sobre o “adro da capela”. A cena, de fato, é linda, mas pouco crível (para ser elegante).

Por óbvio, há que se levar em consideração a excelência comum aos primeiros capítulos de qualquer novela. Afinal, eles são o cartão de visita, elaborados com tempo e dedicação raros de se repetir no decorrer da trama. Mas, pelo vigor mostrado neste episódio de estreia, A dona do Pedaço merece atenção.

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