O povoado russo criado no Uruguai para ser 'paraíso na Terra' — mas que viveu um inferno
Agência BBC

O povoado russo criado no Uruguai para ser 'paraíso na Terra' — mas que viveu um inferno

A vida de uma colônia fundada por imigrantes religiosos da Rússia no oeste uruguaio mudou completamente quando os militares a invadiram durante a ditadura no país. Alguns se perguntam até hoje por quê.

Três bonecas do tipo matrioskas grandes na Plaza Libertad de San Javier, Uruguai.
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Em San Javier, há vários sinais das raízes russas, como as matrioskas

Victor Macarov foi buscado na saída do local onde estudava. Ele tinha 18 anos.

Miguel Schevzov, da mesma idade, foi levado enquanto estava na casa de um amigo.

Vladimir Roslik Dubikin, também de 18 anos, estava no cinema e teve o mesmo destino.

Uma após outra, cerca de vinte pessoas foram detidas entre abril e maio de 1980 em San Javier, um pequeno povoado de imigrantes russos no oeste do Uruguai.

Elas foram surpreendidas enquanto realizavam as atividades mais cotidianas.

Esteban Gilsov voltava de uma pescaria. Jorge Gurin estava em casa com sua esposa, Susana Zanoniani. E Néstor Dubikin, com apenas 16 anos, havia ido de bicicleta até o rio.

Todos foram presos pela ditadura militar que então governava o Uruguai.

Foram levados a um quartel. Tiveram capuzes colocados sobre a cabeça. Foram brutalmente torturados. E 11 deles acabaram enviados para a prisão por meses ou anos.

Nenhum sabia por que estava sendo submetido a tamanho martírio, um pesadelo que se repetiria quatro anos depois, com novas detenções arbitrárias e um assassinato que marcou o fim do regime militar.

Alguns se perguntam isso até hoje.

"Não entendo qual foi o motivo que levou essas pessoas a fazer tudo isso, porque é uma maldade", disse Dubikin, hoje com 62 anos, ao testemunhar em um julgamento em andamento contra nove acusados de cometer esses abusos. "Eles destruíram a vida de muita gente."

O promotor uruguaio para crimes contra a humanidade, Ricardo Perciballe, afirmou que o absurdo teve origem na ascendência dessas pessoas.

"Elas foram privadas de liberdade apenas por sua condição de russas, e não por atividade política, nem por terem cometido qualquer crime", disse Perciballe no início do julgamento, em novembro.

O objetivo, sustentou ele, foi "montar uma mentira".

'O cheiro do medo'

San Javier descansa às margens do rio Uruguai, a cerca de 360 km de Montevidéu. Nas margens do rio, é possível ver umas pequenas ilhas, já no lado argentino da fronteira.

O povoado tinha cerca de 1,7 mil habitantes, a maioria de ascendência russa, quando os militares apareceram em 1980 e começaram a prender pessoas, inclusive mulheres.

Placa de boas vindas a San Javier
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A comunidade russa está no departamento de Río Negro, no oeste do Uruguai

Quase todos os detidos foram transferidos cerca de 90 quilômetros ao sul até o Batalhão de Infantaria nº 9 do Exército, na cidade de Fray Bentos, onde tudo passou a assumir contornos kafkianos.

Eles passaram longos períodos em posição de castigo, encapuzados. Foram interrogados com espancamentos, choques elétricos e afogamentos simulados — sempre sob a supervisão de um médico militar, que indicava se a tortura podia continuar.

Eram interrogados sobre uma suposta filiação ao Partido Comunista do Uruguai, ilegalizado e reprimido pela ditadura que começou em 1973 e terminou em 1985, embora, segundo a Promotoria e as testemunhas, nenhum dos detidos tivesse atividade política.

Os interrogadores buscavam estabelecer vínculos entre os presos e a União Soviética.

Ricardo Bozinsky, que aos 19 anos foi uma das vítimas, testemunhou que os militares lhes diziam coisas como: "vocês, russos, são culpados pelo que aconteceu no Vietnã".

"Não sei o que eles queriam. Eu não entendia nada", disse Bozinsky ao juiz do caso, Claudio De León.

Eles perguntavam sobre supostas práticas de tiro, explosivos e contrabando de armas. Sobre alegados aviões que pousavam no meio do campo e sobre hipotéticos contatos com submarinos soviéticos, apesar de o rio Uruguai, naquela região, ter poucos metros de profundidade.

A mistura de torturas e absurdos deixou marcas profundas nos detidos.

"O mais fraco não é o músculo, mas o esgotamento cerebral. Depois, a pessoa perde o controle mental do tempo e do espaço. É como um delírio. E a mente vê o que quer ver: vê frutas, água", testemunhou Aníbal Lapunov sobre os abusos que sofreu aos 22 anos.

"Depois vêm uns choques", acrescentou. "A pessoa desperta e eles começam: 'Sim, porque você é agente da [agência soviética de inteligência] KGB e tem um submarino e pilota um Boeing'… E a gente fica olhando, sem entender."

Aníbal Lapunov foi uma das testemunhas ouvidas em Fray Bentos
Youtube / Portal APU Uy
Aníbal Lapunov foi uma das testemunhas ouvidas em Fray Bentos

Lapunov lembrou que chegaram a ameaçá-lo de imobilizar seus pés em uma lata com concreto e jogá-lo no Rio da Prata.

"Esses famosos chineses não eram nada chineses, eram outros como eu", disse que lhe advertiram, em referência a cadáveres que haviam aparecido algum tempo antes nas costas uruguaias e que os militares atribuíam a navegantes asiáticos.

Um par de adolescentes foi levado por soldados armados até um campo próximo ao vilarejo, onde pouco antes haviam tentado avistar óvnis como simples passatempo.

Sob ameaças de morte, foram interrogados sobre supostas armas escondidas.

"É ridículo, é como a história dos submarinos e do avião", testemunhou Omar Karamán, que então tinha 17 anos, sobre a ideia de que existisse uma célula comunista armada no povoado. "Se não fosse tão trágico, seria até engraçado."

Os detidos estavam incomunicáveis, e seus familiares ignoravam o que lhes estava acontecendo.

Lena Roslik ainda recorda o cheiro das roupas de seus dois irmãos e de seu pai, Miguel, presos no quartel, quando as recebeu de volta em troca das peças limpas que haviam levado.

"Tinham algumas manchas de sangue e um cheiro muito característico", lembrou como testemunha no julgamento. "Não era cheiro de sujeira, era outro cheiro estranho: eu dizia à minha mãe que era o cheiro do medo."

Lena Roslik ainda se lembra do
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Lena Roslik ainda se lembra do 'cheiro estranho' das roupas de seu pai e de seus dois irmãos, presos no quartel de Fray Bentos.

Alguns foram liberados após vários dias.

Mas 11 detidos foram obrigados, à força de espancamentos e torturas, a assinar uma declaração afirmando que eram comunistas e que integravam um grupo armado.

A Justiça Militar então os enviou para o Presídio de Libertad, que, apesar do nome, é uma prisão no sul do país. Desorientados, comunistas presos no mesmo andar lhes perguntavam quem eles eram, já que nenhum se encaixava nas ideias que tinham sobre os membros do partido.

Alguns passariam um ano e meio encarcerados. Outros, quatro anos.

Em 21 de junho de 1980, um comunicado oficial sobre o caso afirmou que "uma importante célula do aparelho armado do proscrito Partido Comunista, que estava capacitando seus integrantes para a luta armada, foi desbaratada pelas Forças Conjuntas".

'Suspeitos'

Puerto Viejo é o ponto do rio Uruguai onde desembarcaram, em 1913, cerca de 500 imigrantes russos para fundar sua colônia.

O objetivo deles era criar o reino de Deus na Terra, explica Virginia Martínez, professora de História, em seu livro Los rusos de San Javier (Os russos de San Javier).

Eles pertenciam a uma seita chamada Novo Israel, que fugia da perseguição da Rússia czarista e foi atraída por um Uruguai que recebia de braços abertos imigrantes de diferentes partes do mundo.

Familias colonizadoras rusas posan para una foto en Río Negro poco después de  su llegada para fundar San Javier.
John Fitz-Patrick/Anip/SODRE
Centenas de imigrantes russos desembarcaram nas margens do rio Uruguai a partir de 1913, em busca de estabelecer o reino de Deus na Terra.

O líder da comunidade era Vasili Lubkov, ao mesmo tempo profeta e administrador-geral. Eles o chamavam de "Papai".

Em seus primórdios, a colônia reuniu cerca de 150 famílias de camponeses, que adotavam um sistema de propriedade coletiva da terra e cultivavam trigo, milho e linhaça. Também produziram o primeiro óleo de girassol do Uruguai.

Com o tempo, a liderança de "Papai" gerou dissidências internas. E a colônia de San Javier, com suas regras e costumes peculiares, passou a motivar debates na imprensa e até no Parlamento de um país que já consagrava a laicidade do Estado.

Ao final, Lubkov foi destituído do cargo de administrador e, junto com um grupo de famílias, iniciou a viagem de volta às suas terras de origem, em 1926.

Mas, então, a Rússia já havia se transformado na União Soviética, e o profeta foi enviado a um campo de concentração.

A San Javier chegaram novos imigrantes russos, ucranianos e de outras nacionalidades, muitos deles fugindo da Revolução Russa e do socialismo.

No povoado, surgiram tensões com reivindicações de terras lideradas por comunistas. Em 1933, uma pessoa morreu e outras ficaram feridas quando a polícia reprimiu uma reunião sindical.

Pessoas, casas e carroças ao longo de um caminho de terra em San Javier, pouco depois da fundação do povoado por imigrantes russos.
John Fitz-Patrick/Anip/SODRE
Nos primórdios de San Javier, a terra era considerada propriedade coletiva pelos imigrantes russos

Mas San Javier nunca foi um bastião comunista nem de esquerda. Muitos moradores simplesmente não se envolviam com política ou simpatizavam com o tradicional Partido Colorado, que governava o país quando chegaram os primeiros colonos.

Pouco pareceu importar isso ao regime militar que se instalou no Uruguai a partir de 1973 e que, assim como outros governos de fato daqueles anos na América do Sul, passou a considerar o comunismo e a esquerda em geral como um inimigo a ser destruído, no contexto da Guerra Fria.

O simples fato de, em San Javier, falarem russo, haver danças ou comidas eslavas e de alguns terem ido estudar com bolsas em Moscou "os transformou, para a ideologia profundamente anticomunista da ditadura, em suspeitos", disse Martínez durante o julgamento.

No mesmo ano em que deram o golpe de Estado, os militares realizaram batidas e prisões em San Javier. Voltaram em 1976, com mais repressão.

Mas nada se compara ao que aconteceria depois.

'Uma grande ruptura'

"Mataram ele! Mataram ele! Assassinos!".

María Zavalkin repetiu, no tribunal de Fray Bentos, os gritos que deu quando lhe entregaram o corpo sem vida de seu marido, o médico Vladimir Roslik Bichcov, na segunda-feira, 16 de abril de 1984.

Roslik morreu aos 42 anos. Seu corpo estava dentro de um caixão sem tampa, em um necrotério da mesma cidade, descreveu Zavalkin. Ele tinha a cabeça enfaixada, parte do nariz escurecida e uma camisa manchada de sangue no peito.

Ela gritava então para o médico Eduardo Saiz, chefe do serviço de saúde do Batalhão nº 9 do Exército.

Zavalkin conhecia Saiz desde 1980, quando seu marido foi preso e torturado naquele quartel e ela tentava levar-lhe medicamentos.

María Zavalkin prestou depoimento sobre a morte sob tortura de seu marido, Vladimir Roslik, no julgamento dos abusos cometidos contra moradores de San Javier.
Youtube / Portal APU Uy
María Zavalkin prestou depoimento sobre a morte sob tortura de seu marido, Vladimir Roslik, no julgamento dos abusos cometidos contra moradores de San Javier

Roslik era um dos 11 detidos de San Javier enviados para a prisão de Libertad. Passou 18 meses ali por supostos vínculos com o Partido Comunista, algo que Zavalkin descarta.

Quando foi libertado e voltou para casa, em San Javier, pediu à esposa, por favor, que nunca lhe perguntasse o que havia acontecido.

"Nunca quis falar, mas mudou", disse Zavalkin ao juiz. "Ficou no banheiro não sei quanto tempo, olhando-se no espelho."

Nascido em San Javier, filho de pais russos, Roslik havia estudado Medicina em Moscou, com bolsa da Universidade Patrice Lumumba.

De volta ao seu povoado natal em 1969, tornou-se um médico muito procurado por moradores que valorizavam seus conhecimentos, sua disponibilidade e o domínio do idioma russo.

Mas, ao sair da prisão, as autoridades o proibiram de exercer a profissão e, segundo Zavalkin, "isso foi o que ele mais sofreu".

O casal teve um filho, Valery, quatro meses antes de os militares voltarem a buscar Roslik, na madrugada de domingo, 15 de abril de 1984.

Na operação — uma reedição abrupta do que havia ocorrido quatro anos antes —, outros moradores de San Javier também foram detidos e levados ao batalhão de Fray Bentos, onde foram interrogados sob tortura sobre supostos vínculos com o comunismo e alegados transportes de submarinos com armas pelo rio.

Vladimir Roslik e María Zavalkin com seu filho, Valery
Acervo pessoal
Vladimir Roslik e María Zavalkin com seu filho, Valery

"De novo, não!", gritava Roslik quando os soldados invadiram sua casa, colocaram-lhe algemas e um capuz e o levaram, entre choros, lembra Zavalkin, emocionada.

Às 6h da manhã do dia seguinte, o pai dela avisou que seu marido havia falecido. Então ela concluiu que o tinham matado.

A primeira autópsia de Roslik, realizada por Saiz, indicou, no entanto, sinais compatíveis com morte por parada cardiorrespiratória, sem violência.

Depois de enfrentar Saiz aos gritos e de receber uma certidão de óbito com omissões evidentes, Zavalkin ligou para um médico conhecido, que lhe recomendou solicitar outra autópsia.

O novo exame foi autorizado na cidade de Paysandú, com outros médicos militares, e estabeleceu como causa da morte "anemia aguda; síndrome asfíxico".

O médico de confiança de Zavalkin participou dessa autópsia e registrou vários sinais de violência no cadáver.

Um relatório posterior de peritos forenses, com base em ambas as autópsias, concluiu que Roslik teve "uma morte violenta de múltiplas causas", com laceração do fígado, vários traumatismos e obstrução das vias aéreas por um material fluido semelhante ao do estômago.

O regime se recusava a admitir que Roslik havia sido assassinado. Em vez disso, insistia que ele integrava "um agrupamento subversivo ligado ao clandestino Partido Comunista" que traficava armas.

Mas os resultados da segunda autópsia e do último laudo pericial foram revelados pela imprensa, e soube-se que Roslik morreu detido sob tortura.

Esse teria sido o último crime de uma ditadura que se desmoronava pouco a pouco, assim como suas mentiras.

"O que aconteceu com o assassinato de Roslik", diz a professora Martínez no tribunal, "é uma grande ruptura no país" e "na consciência de boa parte da sociedade".

Infiltrados

Como surgiu exatamente a ideia dos militares uruguaios de invadir San Javier em 1980 e 1984 continua sendo um mistério.

Daniel Rey Piuma, um desertor da Marinha hoje falecido, afirmou em um livro já na democracia que a operação de 1980 começou com uma denúncia anônima enviada a uma unidade naval distante, sobre a correspondência de duas pessoas do povoado.

Naqueles anos, a colônia recebia correspondência da União Soviética, sobretudo porque muitos tinham familiares lá, explicaram testemunhas do julgamento. Mas descartaram que se tratasse de material político proibido.

No entanto, após aquela denúncia anônima, os serviços de inteligência do regime se infiltraram o povoado.

Enviaram agentes que se passavam por turistas, caçadores ou vendedores de carros, em busca de informações sobre supostas atividades subversivas.

"Fizeram uma ação de inteligência sustentada e perceberam que ali não havia tal célula armada", indicou Martínez diante do juiz.

Vista aérea de San Javier
AFP via Getty Images
O pequeno povoado de San Javier foi espionado por serviços de inteligência militar antes da operação de 1980, segundo depoimentos.

Mas o Exército invadiu San Javier mesmo assim. E, além de deter adultos e menores de idade, fechou o Centro Cultural Máximo Gorki, onde os moradores praticavam o idioma, danças e música da Rússia.

Os soldados destruíram murais que decoravam o palco do clube e levaram peças de cenografia como espadas, bastões e uma velha estrela com a foice e o martelo como provas de que havia comunistas armados, testemunhou José Erramuspe, que integrava a comissão do centro cultural.

As autoridades informaram que em San Javier apreenderam diferentes armas longas e curtas. Mas a maioria eram espingardas e revólveres de baixo calibre, material mais típico de um povoado rural do que de um arsenal soviético.

O promotor Perciballe sustentou que serviços militares de inteligência "montaram de forma fictícia essa ideia de que em San Javier havia pessoas vinculadas à União Soviética e ao Partido Comunista, o que é absolutamente falso", para reforçar a posição do regime antes de um plebiscito constitucional convocado em 1980 com o objetivo de permanecer no poder.

No entanto, em novembro daquele ano, os uruguaios votaram contra a proposta constitucional das Forças Armadas.

E, em 1984, os setores mais duros da ditadura tentaram ressuscitar a noção de uma ameaça comunista em San Javier para dificultar o retorno da democracia ao país, porque "queriam manter seus benefícios" e "a impunidade que tinham até então", indicou Perciballe.

O Centro Cultural Máximo Gorki de San Javier, onde se praticavam danças russas, foi fechado pelos militares e reaberto na democracia.
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O Centro Cultural Máximo Gorki de San Javier, onde se praticavam danças russas, foi fechado pelos militares e reaberto na democracia

Em sentença proferida em 22 de dezembro, o juiz De León sustentou que se trataram de crimes contra a humanidade, pelos quais condenou os nove oficiais militares da reserva a penas de prisão que variam de 11 a 15 anos e meio, conforme solicitado pela promotoria.

Entre eles estão ex-oficiais que comandavam o batalhão Fray Bentos durante as detenções e torturas, como Óscar Mario Roca e Sergio Caubarrere, além de outros responsáveis ​​pelos abusos físicos, como Dardo Ivo Morales e Abel Pérez.

O ex-médico militar Saiz também foi condenado: recebeu uma pena de 13 anos de prisão.

Ao ler a sentença, o juiz, em nome do Estado uruguaio, ofereceu "um pedido de desculpas a todas as vítimas das operações de San Javier de 1980 e 1984" pelos crimes cometidos.

"Reconhece-se que, durante as operações de 1980 e 1984, vocês foram vítimas de um ataque generalizado e sistemático contra a população civil, sujeitos a prisões arbitrárias, privação agravada de liberdade e tortura", declarou o tribunal.

"Esses atos constituíram graves violações dos direitos humanos."

Os réus se declararam inocentes, mas se recusaram a prestar depoimento durante o julgamento, e seus advogados anunciaram que recorreriam da sentença.

"A acusação construiu uma narrativa que, além dos aspectos legais, é política e histórica, tentando julgar uma época em vez das ações específicas e pessoais dos acusados", argumentou uma das advogadas de defesa, Graciela Figueredo, no início da audiência.

Ela acrescentou que "os réus desempenharam funções militares formais dentro de um contexto institucional específico, sem terem ordenado, participado ou colaborado com quaisquer atos ilícitos."

Sala de julgamento com advogados
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Nove ex-militares são réus e se declaram inocentes no julgamento pelos abusos cometidos contra moradores de San Javier durante o governo de fato.

Durante o governo de fato no Uruguai, houve milhares de presos políticos e pessoas torturadas. Segundo dados oficiais, 197 pessoas desapareceram (a grande maioria ainda não foi encontrada) e 202 foram assassinadas por responsabilidade do Estado entre 1968 e 1985.

O julgamento sobre San Javier é uma das ações por crimes contra a humanidade durante o regime militar que foram abertas no país depois que, em 2011, foi invalidada uma lei que blindava os responsáveis por esses crimes contra a persecução penal, a qual havia sido ratificada em duas votações populares.

O assassinato de Roslik ficou excluído do processo devido a uma sentença anterior que o considerou coisa julgada.

Mas Zavalkin sente que está mais perto de alcançar a justiça que busca desde 1984.

"Só agora — ainda bem que continuo lúcida — é que foi possível fazer tudo isso", diz, aos 72 anos.

'Uma história de terror'

O inferno que San Javier viveu ainda é evocado ali de diversas maneiras.

A rua principal que leva à cidade agora se chama Vladimir Roslik.

Uma fundação sem fins lucrativos com o mesmo nome, criada pela família Roslik, inaugurou uma clínica médica, um lar de idosos e uma creche na cidade.

Norma Karamán ao lado de sua mãe, Clara Chaparenko. Ela é uma mulher de meia idade, com cabelos grisalhos, usando óculos e camiseta amarela. A mãe é uma idosa de cabelos brancos, e usa óculos e uma blusa sem mangas com estampa em preto e branco
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Em San Javier, hoje em dia, 'quase ninguém entende' russo, diz Norma Karamán ao lado de sua mãe, Clara Chaparenko, em sua casa na vila

As tradições russas ainda estão vivas na comunidade, evidentes em pratos como o borscht (uma sopa de beterraba) e o vareniki (uma massa fresca recheada).

O grupo de dança folclórica local Kalinka atraiu recentemente uma plateia de cerca de 200 pessoas para uma apresentação no Centro Cultural Maxim Gorky, que reabriu após o retorno à democracia.

Mas hoje, é raro ouvir o idioma trazido pelos imigrantes. "Quase ninguém entende russo", diz Norma Karamán, que costumava ensinar o idioma na aldeia.

Durante o julgamento, Zavalkin relacionou a mudança às operações militares da década de 1980. "As pessoas ficaram com medo. E o russo desapareceu: ninguém queria falar russo", relatou.

Outras testemunhas também falaram sobre o medo e a desconfiança persistentes entre os vizinhos.

"Vivemos aterrorizados por muito tempo", disse Ana Semikin, que presenciou a prisão de seu pai.

"Passar por tudo aquilo de repente foi muito difícil. Não só para as famílias; foi muito difícil para a cidade. Conviver com as pessoas também foi difícil, porque muitas acreditavam no que o jornal dizia, no que viam na televisão repetidamente."

Duas crianças andam de bicicleta em uma rua larga, em frente ao monumento com bonecas do tipo matrioskas ao fundo
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De acordo com testemunhas no julgamento, San Javier sofreu consequências duradouras devido aos abusos cometidos pelos militares

Sergio Onetto, que foi detido por vários dias em 1980, aos 17 anos, afirmou que "talvez a pior consequência tenha sido a social".

"San Javier era uma cidade muito acolhedora. Eu entrava e saía de muitas casas sem bater. E muitas pessoas me pediram para não ir lá mais", testemunhou.

No ano seguinte, Onetto mudou-se para Montevidéu, onde mais tarde se tornaria psiquiatra.

Mas, quando voltava a San Javier para visitar, lembra que via como o plano de vida de seus amigos jovens que passaram mais tempo presos ficou interrompido.

Um deles é Vladimir Roslik Dubikin, sobrinho do médico assassinado, em quem ele notou uma "significativa deterioração psicológica" após sua libertação da prisão de Libertad. Hoje, ele vive em uma instituição psiquiátrica.

"Em maior ou menor grau, todos nós saímos com cicatrizes psicológicas", testemunhou Macarov. "Não acho que alguém possa jamais esquecer a tortura infligida por um ser humano a outro."

Susana Zanoniani, ex-professora da cidade que foi presa e torturada em 1980 junto com alguns de seus alunos, falou como testemunha por videoconferência aos 80 anos e exigiu justiça para as vítimas, "para aquele que é louco, para aqueles que se mataram uns aos outros, para aqueles que morreram injustamente".

"Nada hoje cria uma história de terror como aquela perpetrada pelos militares em San Javier", refletiu ela. "Porque foi uma história de terror."

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