Por que interessa a Trump resgatar agora o governo Milei na Argentina
Eleições na Argentina neste mês vai ser teste para Milei - e o governo Trump parece não estar disposto a perder um aliado ideológico
Ele não apenas lançou uma colete salva-vidas à Argentina.
Além de aprovar um inédito resgate financeiro, o governo dos Estados Unidos deu também um respaldo político ao presidente Javier Milei durante sua visita na terça-feira (14/10) à Casa Branca.
Um apoio que vem em boa hora para o mandatário argentino, a poucos dias de seu partido enfrentar eleições legislativas que podem definir o futuro de seu projeto político.
"A eleição está próxima, e a vitória é muito importante, estamos aqui para apoiá-lo", disse o presidente americano, Donald Trump, referindo-se às eleições de 26 de outubro, nas quais o apoio ao partido de Milei, A Liberdade Avança, está no centro das atenções.
O programa de reformas econômicas do líder argentino, que chegou ao poder em dezembro de 2023, pode sofrer um duro revés se a oposição ganhar espaço no Congresso.
Após o resgate econômico anunciado há algumas semanas — que inclui a compra de pesos argentinos e um swap (troca) de moedas no valor de US$ 20 bilhões(R$ 109 bilhões), financiado com fundos do Tesouro dos EUA — Trump declarou que o apoio ao país sul-americano se deve à "grande filosofia" de seu aliado político no Cone Sul.
"Se um socialista ou um comunista vence, você se sente diferente em relação a fazer um investimento. Se (Javier Milei) perder para um candidato de extrema-esquerda, não seremos generosos com a Argentina", afirmou.
O secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, acrescentou que a ajuda financeira é uma grande oportunidade para os argentinos. "É melhor formar pontes econômicas com nossos aliados."
Justamente Bessent, o chefe das finanças dos EUA, é quem tem liderado o resgate (cujos detalhes ainda não foram divulgados) e tem insistido na proximidade política entre os dois governos.
'EUA em primeiro lugar' não significa 'EUA sozinhos'
Em um jogo de palavras, Bessent disse que o slogan do governo Trump, América First (Estados Unidos em primeiro lugar), utilizado para defender os interesses americanos sobre o resto dos países, não significa América Alone, ou seja, "Estados Unidos sozinhos".
O secretário disse isso para defender a ajuda financeira à Argentina em um momento em que os EUA enfrentam seus próprios conflitos internos — com um governo "fechado" (temporariamente de mãos atadas para financiar os gastos públicos) e com agricultores sobrecarregados por problemas econômicos.
Se a palavra de ordem é apoiar aqueles que compartilham uma visão semelhante para expandir a influência regional dos EUA, muitos se perguntam se há algo além da afinidade ideológica.
"Supostamente tem a ver com a aliança política de Milei com Trump e com o fato de que ele não tem outros aliados em países relativamente grandes da América Latina em sua disputa com a China", avalia Victoria Murillo, professora de Ciência Política e diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia, nos EUA.
"Milei sempre foi muito leal a Trump", acrescenta a pesquisadora à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. "Não parece haver uma explicação além da geopolítica e da conexão entre ambos."
O resgate, argumentam alguns analistas, permite a Trump reforçar a ideia de que a terapia de choque funciona para reduzir o gasto público e que as ideias libertárias defendidas por Milei são viáveis.
E, para Milei, além de lhe dar um balão de oxigênio em meio à extrema escassez de dólares, ajudaria a fortalecer sua narrativa do "sucesso do modelo" às vésperas das eleições legislativas e, a longo prazo, aumentaria a possibilidade de uma reeleição.
Ainda assim, a generosidade de Washington costuma ter um preço.
Trump tem dois motivos principais para este inédito resgate financeiro, afirma Benjamin Gedan, pesquisador da Universidade Johns Hopkins, nos EUA.
"Um é o respeito inegável que ele tem pelo líder ultradireitista argentino, e o outro é um interesse menos ideológico no sucesso da agenda pró-mercado de Milei", disse ele em entrevista à BBC Mundo.
A agenda conservadora compartilhada por ambos os mandatários explica muito, mas não tudo, adverte Gedan.
"Milei é também um aliado fiel em matéria de política externa, e suas políticas econômicas representam um modelo que historicamente os Estados Unidos têm buscado exportar para as Américas", destaca.
O 'fator China'
Do ponto de vista financeiro, o resgate à Argentina parece ser uma manobra que tenta reforçar as reservas de dólares e frear a queda do peso em meio a um mercado turbulento que não pode se dar ao luxo de permitir a saída de capitais.
"Vão sair dólares até pelas orelhas", disse Milei em Buenos Aires, pouco antes de embarcar no avião rumo a Washington.
A Argentina teve que fazer todo o possível para acalmar os investidores e restaurar a abalada confiança em sua capacidade de evitar o colapso.
Os mercados estão muito sensíveis, especialmente agora que se aproximam vencimentos de dívida e o país está às vésperas de eleições que funcionarão como um plebiscito sobre o modelo de Milei, centrado na austeridade e na redução do gasto público.
Em meio a essas turbulências, há outro fator importante na equação: a China.
Alguns analistas consideram que o resgate dos Estados Unidos é uma estratégia para conter a influência da China na região e favorecer seus próprios interesses políticos e econômicos.
Nesse sentido, a ajuda financeira não busca apenas evitar o retorno da oposição kirchnerista, de esquerda, à Casa Rosada, mas também mostrar à China que ela não é o único país interessado em investir e estreitar os laços comerciais com a nação sul-americana.
As tensões comerciais entre os EUA e a China continuam a escalar, com novas ameaças tarifárias e disputas tecnológicas que podem encontrar em solo argentino mais um palco para a rivalidade entre as potências.
Afinal, não é pouca coisa o fato de a Argentina contar com vastas reservas de petróleo, gás, lítio e terras raras — recursos fundamentais para a transição energética.
Trump estaria apostando em um Milei fortalecido, capaz de conquistar uma reeleição em 2027, garantir a continuidade do modelo e oferecer um contrapeso à influência de Pequim na América Latina.
As críticas nos EUA ao socorro à Argentina
A ajuda financeira à Argentina provocou um turbilhão político nos Estados Unidos.
Agricultores que produzem soja — concorrentes diretos da Argentina no mercado chinês — reclamam, irritados, que o resgate contradiz a promessa de "América em primeiro lugar" e ameaça seus rendimentos.
"A frustração é enorme", escreveu Caleb Ragland, presidente da Associação Americana de Produtores de Soja.
"Os preços estão caindo, a colheita está em andamento e, em vez de garantir um acordo com a China, vemos que estão destinando US$ 20 bilhões à Argentina."
A notícia também não caiu bem entre alguns legisladores republicanos que representam Estados agrícolas e que, em vez de apoiar Trump, reagiram com indignação.
"Por que ajudar a Argentina enquanto ela tira de nossos produtores seu maior mercado?", questionou o senador Chuck Grassley, representante de Iowa, um importante produtor de soja.
A congressista republicana Julie Fedorchak, de Dakota do Norte, classificou a medida como uma "pílula amarga" que enfraquece a posição de negociação dos Estados Unidos com a China.
A polêmica vai além do setor agrícola. Alguns aliados do governo questionaram como o resgate se encaixa na doutrina "America First" e no nacionalismo americano.
Mas a reação mais dura veio da oposição democrata.
"Em vez de usar nossos dólares para comprar pesos argentinos, Donald Trump deveria ajudar os americanos a pagar seus planos de saúde", escreveu a senadora democrata Elizabeth Warren nas redes sociais.
Warren, junto com um bloco democrata do Senado, apresentou um projeto de lei para impedir que o governo Trump conceda assistência econômica à Argentina.
O projeto propõe proibir o secretário do Tesouro, Scott Bessent, de utilizar o Fundo de Estabilização Cambial (FSE, na sigla em inglês) em operações de resgate financeiro.
Os críticos ao governo Trump afirmam que o "salva-vidas" financeiro não busca realmente estabilizar a economia argentina, mas proteger os interesses de grandes fundos privados de investimento como BlackRock, Fidelity e Pimco.
"É um resgate aos ricos disfarçado de ajuda internacional", declarou Warren, pedindo uma investigação sobre os vínculos financeiros entre funcionários do governo Trump e "fundos de cobertura com investimentos na Argentina".
"Trump prometeu colocar os Estados Unidos em primeiro lugar, mas está colocando seus amigos bilionários à frente do povo", concluiu a senadora.
Bessent rejeitou categoricamente a ideia de que o apoio financeiro fosse uma ajuda a seus "amigos bilionários".
"Essa ideia de que estamos ajudando americanos ricos com interesses lá fora é completamente falsa", afirmou em entrevista à emissora CNBC no início deste mês.
"O que estamos fazendo é manter o interesse estratégico dos Estados Unidos no hemisfério ocidental", declarou, advertindo que a inação poderia levar a um "Estado falido".
Na imprensa argentina, surgiram vários tipos de teorias sobre o que Trump poderia obter em troca do apoio a Milei — desde uma suposta entrega preferencial de recursos minerais argentinos a empresas americanas, até um compromisso de limitar os laços econômicos do país sul-americano com a China, algo que Bessent negou.
Mas enquanto não forem divulgados mais detalhes sobre os termos do acordo e as negociações de bastidores, pouco se pode especular sobre que outros elementos poderiam fazer parte das conversas em andamento entre as equipes econômicas dos dois países.
- A disputa entre China e EUA por lítio na América Latina
- A polêmica autorização de Milei para soldados dos EUA participarem de exercícios militares em 3 bases navais argentinas
- Por que nem dinheiro de Trump encerra 'inferno astral' de Milei