Morte de bebê de um mês por mutilação genital feminina reacende debate sobre a prática na África
Agência BBC

Morte de bebê de um mês por mutilação genital feminina reacende debate sobre a prática na África

As mutilações genitais femininas são proibidas na Gâmbia desde 2015. A lei prevê multa e prisão, que pode ser perpétua em caso de morte

 Uma mulher segurando uma lâmina
Getty Images
As mutilações genitais femininas consistem em cortar ou remover deliberadamente os órgãos genitais externos de uma mulher

Na Gâmbia, a morte de uma bebê de um mês após uma mutilação genital feminina causou comoção nacional e reacendeu o debate sobre essa prática profundamente enraizada nas tradições. A prática já é proibida por lei no país desde 2015.

Após o caso, a polícia de Wellingara, município da região da Costa Oeste, anunciou a abertura de uma investigação. Segundo as autoridades, a menina sofreu fortes hemorragias e, levada às pressas ao hospital materno-infantil de Bundung, não resistiu e foi declarada morta ao chegar.

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Uma investigação interna do hospital confirmou que ela havia sido mutilada. Uma autópsia está em andamento para determinar se o procedimento foi a causa direta da morte, e duas mulheres foram presas sob suspeita de envolvimento no caso.

Organizações de defesa dos direitos humanos na Gâmbia têm se posicionado de forma contundente contra o ato e apelam por justiça.

A ONG Women In Leadership and Liberation (WILL – Mulheres em Liderança e Libertação) acusa as autoridades de falharem em proteger as crianças.

"A cultura não é desculpa, a tradição não é escudo; trata-se de violência, pura e simples", declarou em comunicado, pedindo uma investigação rigorosa e a responsabilização dos envolvidos.

A fundadora da organização, Fatou Baldeh, disse à BBC que cada vez mais bebês têm sido submetidos à mutilação genital feminina no país:

"Os pais acreditam que os bebês cicatrizam mais rápido e que realizar a prática cedo ajuda a escondê-la, para escapar da lei."

O deputado Abdoulie Ceesay, eleito por Kombo North (o distrito eleitoral onde ocorreu a tragédia), pediu que a perda seja transformada em um ponto de virada:

"A morte desta criança não deve ser esquecida. Que seja um marco para reafirmarmos nosso compromisso de proteger cada criança."

Uma prática proibida, mas persistente

Em 2015, a Gâmbia aprovou uma lei proibindo a mutilação genital feminina por meio de uma emenda à Lei das Mulheres de 2010 (Women's Amendment Act), após décadas de campanhas de sensibilização e pressão de organizações da sociedade civil e grupos comunitários.

A Women's Amendment Act prevê até três anos de prisão e multa de 50 mil dalasis (cerca de R$ 3.640), podendo chegar à prisão perpétua em caso de morte. Além disso, quem tiver conhecimento da prática e não denunciá-la sem motivo justificado pode ser multado em 10 mil dalasis (cerca de R$ 800).

Apesar disso, a aplicação da lei permanece frágil: desde sua aprovação, foram registradas apenas duas ações judiciais e uma condenação.

A Gâmbia ratificou em 2005 o 'Protocolo de Maputo' sobre os direitos das mulheres e meninas. Dez anos depois, em 2015, o país aprovou a proibição das mutilações, durante o governo de Yaya Jammeh, que declarou que a prática era ultrapassada e não tinha base no islã.

Em março de 2024, um projeto de lei que buscava revogar a proibição gerou forte reação e protestos. Em julho, o Parlamento rejeitou a proposta, pressionado por ativistas e organizações internacionais como UNICEF, UNFPA e Human Rights Watch.

Tradição e pressão social frente aos direitos humanos

Mulher em Mombasa, no Quênia, mostra a lâmina de barbear que utilizava para excisar meninas.
Getty Images
Embora a mutilação genital feminina seja ilegal em muitos países, ela ainda é comumente praticada em algumas regiões da África, da Ásia e do Oriente Médio, assim como entre as diásporas desses países onde a prática persiste

As mutilações genitais femininas são frequentemente percebidas como um símbolo de pureza, respeito e preparação para o casamento. Em algumas comunidades, são apresentadas como uma exigência religiosa, embora muitos líderes islâmicos se oponham à prática.

As praticantes são majoritariamente mulheres idosas, detentoras de um saber ancestral e de influência social. Para muitas famílias, renunciar à prática equivale a romper com um legado cultural, correndo o risco de sofrer ostracismo dentro da comunidade.

Figuras como Jaha Dukureh, fundadora da Safe Hands for Girls, e Fatou Baldeh, da ONG WILL, lideram uma luta intensa contra a excisão, combinando ação política, campanhas de conscientização e mobilização de jovens.

Dados recentes indicam um declínio gradual da prática entre meninas menores de 15 anos, mas a mudança ainda é lenta. A ONU destaca a necessidade de fortalecer a aplicação da lei, envolver líderes religiosos e tradicionais, e apoiar as comunidades na desistência voluntária da prática.

A Gâmbia é signatária de várias convenções internacionais, incluindo a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Ainda assim, no dia a dia, a mutilação permanece uma realidade concreta.

Para os ativistas, o caso de Wellingara ilustra tragicamente que apenas as leis não são suficientes: é necessária uma transformação profunda das mentalidades, acompanhada de aplicação rigorosa, para erradicar a prática.

Segundo a UNICEF, três em cada quatro meninas na Gâmbia são submetidas à excisão antes dos seis anos, e cerca de 76% das mulheres entre 15 e 49 anos já passaram pela prática.

Ela é particularmente comum em áreas rurais, com taxas chegando a 95% na região de Basse, em contraste com menos de 50% na capital, Banjul.

Muitas mulheres ouvidas pelo Unicef e pela OMS declararam que é tabu falar sobre mutilação genital feminina em suas comunidades, por medo de críticas de pessoas de fora ou, nos países onde a prática é ilegal, de que familiares ou membros da comunidade sejam processados.

Por isso, os números disponíveis são baseados em estimativas.

Segundo a ONU, embora as MGF estejam concentradas em 30 países da África e do Oriente Médio, elas também são praticadas em algumas regiões da Ásia e da América Latina, assim como entre populações imigrantes na Europa Ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia.

Desde a implementação do programa conjunto Unfpa-Unicef para a eliminação das MGF, 13 países aprovaram legislação nacional proibindo a prática. O programa também já beneficiou mais de seis milhões de meninas e mulheres com serviços de prevenção, proteção e tratamento relacionados às mutilações genitais femininas.

Cerca de 45 milhões de pessoas em 15 países declararam publicamente que abandonariam a prática.

A ONU estima que mais de 200 milhões de meninas e mulheres ainda vivas foram vítimas de mutilações sexuais em 30 países da África, do Oriente Médio e da Ásia.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a prática inclui qualquer intervenção que remova parcial ou totalmente os órgãos genitais externos da mulher, ou cause qualquer outra lesão nos órgãos genitais femininos por motivos não médicos.

O custo do tratamento das complicações decorrentes das mutilações genitais em 27 países com alta prevalência chega a 1,4 bilhão de dólares por ano.

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