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Íntegra da entrevista com Pedro Bandeira para o Páginas Azuis

Autor de livros que marcaram a infância e a adolescência de muitos brasileiros diz que não se pode culpar a tecnologia por erros cometidos na educação das crianças
06:00 | Nov. 21, 2016
Autor O POVO
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Tipo Notícia
Pedro Bandeira é o avô de uma geração. Autor de clássicos da literatura infanto juvenil como A Droga da Obediência e O Fantástico Mistério de Feiurinha, sucessos na década de 1980, ele continua ativo no mercado editorial. Durante passagem por Fortaleza para dialogar com educadores sobre o relançamento de obras marcantes, o escritor conversou com O POVO. Disposto nos sofás da Livraria Cultura, com um círculo de leitores formado ao redor, Pedro falou de forma ágil sobre leitura, o papel da família e a relevância da tecnologia. Riu, se emocionou, pediu a participação dos leitores e, principalmente, ensinou. Pedro é amado por adultos e crianças. Pais, que foram seus leitores, e agora passam os exemplares preferidos aos filhos. Ao fim da entrevista, aplausos. O POVO - O escritor precisa primeiro ser um leitor? Claro que sim. Lógico que sim. Todo escritor foi um leitor voraz. Foi aquela criança que durante a aula de matemática estava lendo uma coisinha embaixo do fichário. Sabe? Realmente, o mundo do sonho, da fantasia, fez parte da vida de qualquer escritor. Não só eu. Todos. Se você vai ser cantor, desde criança tem que gostar e ouvir música. Se você quer se tornar um nadador profissional, você nada sempre desde pequeno. Então, principalmente na arte e no esporte, são coisas que você tem que começar muito cedo sem saber que está começando. Eu nunca li para estudar. Não. Estudar não é importante. O importante é ler. Eu lia. Lia por queme divertia. Eu estudei no fim da década de 1940/1950, então, imagina que não havia rádio ou televisão. O cinema era só no domingo. Uma sessão da tarde. A nossa diversão era ler. Ler gibi. Muito gibi. Gibi hoje não tá na moda. A criançada não gosta muito de ler gibi mais. Não sei o porquê. E o cinema. O cinema inclusive ajudava muito a fixar a alfabetização. Só haviam filmes estrangeiros, todos legendados. Ou você aprendia a ler, e depressa, ou não dava para assistir cinema. Até os desenhos animados eram legendados. Hoje não. Hoje tudo é dublado. A gente treinava muita leitura no gibi e no cinema. Treinava leitura para se divertir. Eu fui um menino muito sozinho, por que eu tinha dois irmãos muito mais velhos que eu. Eu era o último. Meu pai morreu, eu estava na barriga da minha mãe ainda. Então chegava da escola e era ficar sozinho. Sozinho comigo mesmo. Com os meus sonhos, com os meus pensamentos e com os meus autores. Então, o meu tempo era preenchido lendo qualquer coisa que me aparecesse. Não pensava jamais que aquilo iria me tornar inteligente ou escritor. Nunca pensei. Era a minha diversão. Não da nem para jogar bola sozinho. Eu jogava futebol de botão. Era eu contra eu mesmo. Foi assim. E todos os escritores são como eu. Tenho certeza. O POVO - E qual foi o primeiro livro que o senhor leu na vida? Já me fizeram essa pergunta. A literatura começa a entrar na minha vida no colo da minha mãe. A minha mãe provavelmente chorando muito, pois tinha acabado de ficar viúva. Ela me contava histórias da branca de neve, da cinderela, da chapeuzinho vermelho. E eu adormecia ouvindo a voz dela me contar histórias. Até hoje esse som e essas histórias de fada fazem parte de mim. Foi ai que entrei, acho, na fantasia e na imaginação. Nesse momento. Na voz dessa minha mãe. E dali eu tenho ainda guardada uma versão da cigarra e da formiga. Escrita por um brasileiro chamado José Reis, jornalista. Tenho guardada. É com dedicatória da minha mãe para mim, no meu aniversário de cinco anos. Então, provavelmente ela leu aquela história para mim. Depois, ao longo da vida, eu continuei lendo. Aliás, é uma bela adaptação da Cigarra e da Formiga. Esse é um que tá marcado. Mas tá marcado também O Patinho Feio. Da edição melhoramentos. Era um livrinho pequeno, com uma capa de papelão preto. Minha vida foi essa. Foi essa. Fui criado pelos Irmãos Grimm, Perrault%u2026 O POVO - Eu vou fazer um salto no tempo. O senhor falou da infância, da solidão que acabou levando para os livros. E eu pergunto: com a nova geração, com tanta concorrência das novas plataformas, o avanço do cinema, as modificações da literatura, qual o segredo para continuar puxando crianças e jovens para o mundo do papel? Tudo tem espaço no mundo. Nada vem para destruir. Com algumas exceções talvez. O processador de texto destruiu os datilógrafos. Eu sou do tempo do jornalismo do linotipo. Destruiu o linotipo. Mas as coisas só vêm para acrescentar. Não devemos ter medo do futuro, não devemos ter medo do presente. Muito menos do futuro e das novas invenções. As invenções vêm com maior velocidade do que nunca. Se você nascesse no século XVII, você nascia e morria e o mundo era igual. Hoje, o meu filho tem 45 anos, e o mundo mudou demais durante a vida dele. Quando ele nasceu não havia o computador pessoal. E ele nasceu em 1971. Não havia telefone celular. A câmera? Hoje estamos falando aqui com uma câmera eletrônica. Naquela época, tinha que ter um celuloide, que girava. A máquina fotográfica? Hoje fotografamos com o celular. Você tinha um filme de 36 poses que girava. Essas coisas só vieram para melhorar. Veja como vieram para a minha profissão. Quando comecei a escrever era jornalista e escrevia na olivet. Mas meus livros todos. Esses que acabei de ver. Foram escritos a lápis. Porque a máquina de escrever é ruim, você não pode corrigir, você não pode arrumar. A lápis poderia arrumar. A droga da obediência, A marca de uma lágrima e O fantástico mistério de feiurinhaforam escritas a lápis. HAHAHA. E aí veio o computador, que é melhor que o lápis. Tá tudo sempre limpinho, bonitinho na frente. Tira daqui, põe ali, arruma, modifica. Então, não temos medo das descobertas, da tecnologia. Essa criançada tem uma velocidade enorme de aprendizado. Ela pode hoje em dia a aula não precisa ser chata (frase truncada). O professor não precisa ficar dando um discurso para afirmar coisas. Ele tem que só diligir a pesquisa que a criança pode tá fazendo no celular. Ele não precisa falar em datas da história, está tudo ali. Só veio para ajudar. Essas tecnologias só abrem caminho para a leitura. Por que tá tudo escrito. Se eu não ler bem, não vou poder consultar a internet. Não vou poder fazer nada sem a leitura. E a leitura você aprende nos livros, nas historinhas quando é criança. E você nunca esquecerá disso. Meus leitores nunca esqueceram disso. Hoje os meninos leem mais do que quando eu comecei a escrever. Meus livros hoje vendem mais do que vendiam quando eu comecei a escrever. Tem mais gente na escola no Brasil. Então, vamos agarrar essa tecnologia. Você pode dizer %u201Cnão, Pedro, as crianças ficam viciadas só no joguinho e no computador%u201D. Deixa! Também no passado não era todo mundo que lia. Me preocupa sim, do ponto de vista educacional, uma criança que fica só naquilo. Assim como também me preocuparia uma criança fechada no quarto lendo o dia inteiro. Ela tem problema psicológico. Você tem que beber o mundo. Ler sim, estudar sim. Namorar, jogar bola, ir a festa, falar com os amigos, jogar videogame. Tem que beber tudo que o mundo te oferece. Você fiar em uma coisa só é um problema. E geralmente a criança que tá fechada aqui, ela tá tendo um problema em volta dela que não tá sabendo resolver. E você pode chamar um psicólogo. Se ela estiver bem, ela joga aqui e vai brincar acolá. O menino está lá jogando e o pai chega para ele %u201Cmeu filho, vamos jogar bola%u201D. Ele larga na hora. Mas o pai não aproveita. Aproveita que o pai tá distraído e vai tomar cerveja com os amigos. Muitas vezes, é a única opção que estamos dando a ele. Se ele estiver vendo televisão e o papai falar %u201Cvamos passear%u201D, ele larga na hora. Ele quer o pai. Estou falando de uma criança ainda pequena. Mas quando ele não tem alternativa ou vê os pais brigando ou discutindo. Não sabe agir e fica jogando o joguinho de mata-mata. É uma forma de fugir do problema. Não vamos por culpa na tecnologia de erros que nós cometemos. Na educação de nossos filhos. O POVO - O senhor falou que escreveu os primeiros livros a lápis. Eu queria saber como foi esse processo de publicação do primeiro livro%u2026 Eu, para me sustentar, sempre fui jornalismo e o jornalismo me sustentou. Eu editava. Editei o primeiro livro de Marcos Reis, que foi um grande autor de literatura juvenil. Eu era do ramo. Então, não foi difícil. Eu já tinha publicado livros de outras pessoas. Já tinha mais de 40 anos. À época, era diretor de marketing de uma grande editora. Editora Abril. Eu não tive dificuldade. Apresentei para um editor, ele gostou, publicou. Mas eu não sabia. Eu não sabia escrever para adolescente. Fui me dedicar. Aprender o que é o meu leitor. Estudar. Para poder fazer livros mais bem dirigidos as idades que eu queria dirigir. Nunca fui pedagogo, nunca fui psicólogo. Então, a partir de 38 ou 40 anos, comecei a estudar psicologia do desenvolvimento. Hoje sou muito mais isso do que fui%u2026 O jornalismo de hoje, moderno, eu não saberia como fazer. O POVO - O senhor falou também que hoje tem um salto no mundo de venda dos livros. O senhor recebe muita resposta dos adolescentes sobre os livros? Antigamente, eu recebia saco de cartas. Agora os carteiros tão desempregados. É só email. Só email. De fortaleza tive já muitos amigos. Essa gente começou a me escrever com 12 anos. E alguns ficam meus amigos. Continuam escrevendo. Depois recebo convite de casamento. A foto do primeiro filho. Eu já tenho livro dedicado a uma leitora, que já casou e teve filho e já dediquei livro do filho. Ficam minha família. Talvez eu vá acompanhar a Meg (menina que estava perto, acho), a Meg vá me mandar email. E de repente a gente fica assim. Eu estava agora no Recife com um menino que é um autor de literatura infanto-juvenil, que foi meu leitor desde os 12 anos. É gostoso quando a gente tá velho e colhe todas essas flores que plantou. O POVO - Agora vamos fazer uma pergunta sobre amor. A gente viu em algum lugar que a sua primeira namorada foi a Narizinho. E qual a sua relação com o Monteiro Lobato? Foi muito importante. Monteiro Lobato é um autor que hoje a gente revendo muito das crônicas e das cartas que ele trocava, escrevia, cartas longas. Ele demonstrava ser um grande reacionário sobre uma série de assuntos. Mas como autor para criança ele era o único por muito tempo. Ele era quase que se baseia assim em Lewis Caroll. O Lewis tem a Alice, que tá junto com a irmã e adormece. E nesse sonho aparece um coelho com relógio e ela vai para o País das Maravilhas. A Narizinho também. É uma menina solitária, que mora num sítio com duas velhas, a avó e a empregada, e tá do lado de um regato, deita, adormece e sonha que sai um peixinho dourado do lago. Casa com o peixinho. E arranja um caramujo que é o médico que tem uma mágica para fazer, um medicamento para fazer a boneca muda dela falar. Toda boneca é muda. A não ser aquela que aperta a barriga e fala %u201Cmãmã%u201D. Mas naquele tempo não. As bonecas eram bruxas feitas de pano e mudas. É tudo imaginação de Narizinho. O primeiro livro, reinações, é brilhante. Tanto que não sei se vocês têm na lembrança. Tem toda uma aventura inicial e depois, na segunda parte do livro, todos os personagens de fada e etc vem visitar a narizinho no sítio. Vem a branca de neve, todo mundo. E vem inclusive os heróis dos filmes que ela viu na época. O cawboy Tom Mix e um desenho animado do Gato Félix. É tudo o momento da narizinho. Ela vai lendo. Eles vêm para ela. As leituras dela vêm para ela. Que bela metáfora. Ela passa a conviver com os heróis que ela estava lendo na época. Os heróis de Grimm, Perrault e tudo mais. Ela monta aventuras com aquilo. E também com os personagens de filmes mudos da época. É década de vinte. Tinha um cowboy famoso com chapéu chamado Tom Mix. E um desenho preto e branco de um gatinho chamado Gato Félix. Ela certamente viu isso. Veja, a metáfora! Qual é a verdade? %u201CA Branca de Neve é minha. A Chapeuzinho Vermelho é minha. Os Sete Anões dormem do lado da minha cama. Claro que são meus%u201D. Foi brilhante. Agora, realmente, você deve estar falando de descobrir recentemente, nos anos dele, como ele era eugenista né? E tal. Preconceituoso em textos para adulto. Mas não para criança. Nos de criança ele foi cuidadoso. É só sonho, só desejo de um Brasil inteligente, mais bem educado. O POVO - E esse aquecimento do mercado editorial em torno do público infantil e juvenil. Tem muita gente produzindo. Muitas editoras investindo no ramo. Como o senhor avalia isso? O Brasil é o país de uma triste história. Nossa história é triste. Um país não foi colonizado, mas invadido e explorado. Ninguém veio aqui para fazer um país. Os europeus vieram aqui para saquear, para escravizar, para matar os índios, para escravizar os africanos, para enriquecer e voltar rico para a Europa. Até nem voltava. Eles imediatamente destruíram toda a floresta. Aqui, no Ceará, foi tudo destruído. As grandes florestas de pau-brasil, de repente, eram campos. Só vazio. E ninguém pensou jamais essas crianças que nasciam dos estupros desses europeus com as índias e com as escravas que fossem cidadãos e que merecessem escola. Nunca houve escola aqui. Sempre fomos um país analfabeto e atrasado. Então, nós temos uma grande luta para mudar essa história. Para investir no futuro. Investir no futuro e investir em criança. Não adianta fazer programa de alfabetização de adulto. Um homem de 40 anos que não aprendeu a ler não vai aprender. E se aprender um pouco não vai ser capaz de ler jornal. Ele perdeu o tempo dele. Nós temos que pegar o filho dele. E impedir que o filho dele seja igual. O MEC há 40 anos produziu uma indicação de que nas escolas de ensino fundamental fosse adotada aula de português livros escritos no Brasil. Não havia. Havia Monteiro Lobato,mas já era muito velho. Falava de um Brasil rural. Mas o Brasil não era mais rural. Era urbano. O Brasil não era mais rural. Falar para as crianças como é uma vaca, ela acha que o leite sai do pacotinho, e não da teta da vaca. Então, Monteiro Lobato já não era suficiente. As editoras começaram a correr atrás para cumprir a recomendação do Ministério da Educação. E falaram com autores adultos. Marcos Rey é um caso. Pedro Bloch que era um médico do Rio de Janeiro. Várias pessoas. E começam as editoras a investir nisso. Pois tem uma grande demanda. O professor de português não pode usar o texto do Harry Potter. Pois não é o texto dela, é o texto traduzido, do tradutor. Você não estaria adotando o texto da autora original. Estaria adotando o texto do tradutor. Então, é melhor pegar a língua portuguesa original criada por alguém que escreve em português. Então, isso possibilitou pessoas como eu%u2026 se não houvesse isso eu não teria escrito. Por isso, estou dizendo que essa gente está lendo mais. Pois eles têm que ler na escola. Esse fenômeno não existe no mundo inteiro, só no Brasil. Na Alemanha, você não precisa adotar literatura na escola. Quem apresenta a literatura as crianças são os pais, os avós. Aqui nós temos, se a professora não levar o menino para um museu, o pai não leva. Lá não. Lá o papai leva. Desde pequenos. A escola vai ensinar aquilo que a família não sabe ensinar. Matemática. Aqui o pai não sabe ensinar. Educação não é um problema da escola. Educação é um problema da família. O POVO - Quem o senhor vê hoje que pode ser o sucessor do senhor e de autores como Ana Maria Machado, Ziraldo? A gente não tem condição de acompanhar. A gente não recebe esses livros. São centenas de autores. Recebo de alguns amigos que mandam. Um livrinho ou outro. Ouço falar só. Ouvia falar de uma que é muito vendida e adoro, que é a Thalita Rebouças. E uma vez estava em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e estava lá. E uma menina disse que amava meus livros: %u201CPara mim, só tem dois autores. Tu e a Thalita Rebouças%u201D. Fui numa livraria e tinha cinco livros dela. Comprei os cinco livros. Coloquei na mala. Cheguei em São Paulo, peguei um táxi, o táxi parou numa esquina e colocaram o revólver na minha cabeça e levaram tudo que eu tinha. Inclusive minha mala com os livros da Thalita Rebouças. Foi horrível. Meus documentos. Foi horrível. Então, veio um repórter que estava conversando comigo e perguntou da Thalita. Eu contei isso. Ela leu. E me mandou todos os livros dela. Somos amigos até hoje. Ela eu acabei conhecendo. Tem alguns amigos. O POVO - Mas o senhor gosta do que tem lido? Acha que tem conseguido manter a qualidade da sua geração? O problema é que leio os caras da minha idade. Meus amigos são caras da minha idade. Eles que me mandam livros. A Thalita é mais nova, mas tem 40 anos. Já é uma veterana. Eu não leio. Não sei. Não posso fazer uma afirmação. Eles estão sendo adotados. Estão se tornando profissionais. Saem mil novos livros por ano. Não leio, pois nem tenho acesso. Não dá para acompanhar. Além do que, a gente adulto, para escrever para criança, tem que ler também livro adulto. Eu tenho que ler literatura adulta. É isso que eu leio. Leio quando um amigo me manda. Acho maravilha. Tem alguns, mas são gente de 50 anos. Os mais novos eu não posso dizer. Aposto que o Ziraldo também não leu.o Ziraldo vai fazer 85 anos. A Ruth fez 86 em março. O POVO - E a gente se sentindo meio órfão%u2026 É. Tá todo mundo morrendo. Então, a gente precisa dessa nova geração. Mas deve estar acontecendo coisa boa. Pois vejo nomes que nunca vi. Tem muito autor que nunca mais ouvi falar. Autor que não está escrevendo mais. Quando falo com os editores, eles estão sempre publicando. Certamente deve ter. Eu, Ruth e Ziraldo começamos muito velhos. Começamos por volta de 40 anos. O Monteiro Lobato também. Começou com 41 anos. A Ruth Rocha era professora. Agora, não. Tem gente de 30 anos escrevendo. É isso que nós precisamos. Alguém que tenha mais chão. Mais vida pela frente para escrever. Deve tá. Eu sei que as editoras estão publicando muito. Estão melhorando as ilustrações. Livros bonitos. O POVO - A Moderna fez várias edições de novos livros. Qual o sentimento de ver essas publicações que fizeram tanto sucesso nas décadas de 1980 e 1990, elas voltando? Existe uma nova proposta visual. Chamada maismoderna. Baseada nos Fanfics e nessas coisas. É tudo mais ágil, mais explosivo. A Moderna está fazendo coisa assim. Antes, as ilustrações eram mais contemplativas, calminhas, paradas. Pega as ilustrações de livros antigos e parecem fotografias. Os personagens%u2026 Agora estão pulando, tem explosão. Estamos seguindo essa linguagem ágil. O POVO - Falando sobre modernidade, tivemos uma presença forte dos youtubers na Bienal de São Paulo. Eles estão ganhando espaço e publicando%u2026 Isso é outra história. A Bienal não tem nada a ver com um cara como eu. Sou contra esse modelo. É um modelo que você paga R$ 25 para entrar. Um sujeito com a esposa e dois filhos tem que gastar R$ 100. Se ele for de carro, o estacionamento é R$ 40. Se faz um lanche gasta mais R$ 100. Ele vai gastar R$ 300 antes de comprar um livro. Ele não compra mais livro. Não se vende livro na Bienal. A Bienal é um lugar que não vende livro. HAHAHAHAHAHHAA Aquela molecada vai lá para tomar lanche, ver os youtubers, passear. Não é mais uma bienal de livro. É diferente da feira de Frankfurt. É outra coisa. E é uma coisa assim%u2026 é meia Fortaleza de grande. O que tem é uma festa do organizador. Ele quer ganhar dinheiro. Tudo bem. E os youtubers são um fenômeno que tem espaço. É bacana. Não é literatura. Mas é uma coisa válida. As pessoas gostam e tem que haver. Eu tenho um neto que fica vidrado naquilo. Não é ruim. A Bienal nunca será uma feira do livro. O certo seria pagar R$ 25 para entrar e esse dinheiro pode comprar livro. Aí seria bom. O livro custa R$ 50, você dá mais R$ 25 e leva o livro. Mas não é assim. Primeiro você paga para o organizador da Bienal. Não sobra dinheiro para comprar livro. Há uns anos tinha uma bienal em Fortaleza que era uma loucura. Uma vez eu estava lá e tiveram que chamar os bombeiros para impedir o pessoal de entrar. Pois não cabia mais. Com aquele calor terrível. Os ventiladores com água. Ficou cheio de gente. E era pelo livro. Não faz cinco anos. Não teve mais. No máximo, dez anos. Uma senhora Bienal que tinha em Fortaleza. Era muito bem-feita e a estrela é o livro. Tudo bem, nós temos nosso espaço. Se aquilo vai ser uma feira de diversão, que seja. E tem lá. A maioria dos livros que tem lá agora%u2026 tem uma editora que nem vai. Vai uns sujeitos com livros baratos, que vem da China, impressos da China, chegam emcontainner. Compra a vinte centavos e vende a R$ 3. Não é mais o meu espaço. Eu fui. Encontrei meus amigos. O Ziraldo vai. Com uma paciência. Faz desenho%u2026 O POVO - Como foi a relação de incentivar os filhos a serem leitores? Minha mulher era educadora. Está aposentada. Nossa casa foi uma casa de livro de forma muito natural. Fez parte da vida da casa. Não precisamos impor quando a coisa faz parte. Quando o menino cresce e nunca viu o pai lendo um romance ou nunca viu a mãe lendo um romance, por que ele acha que ler é bom? Não faz parte do ambiente dele. Você, Cinthia, seus filhos viram você lendo sempre. Fazia parte da família, a leitura. Não tem que impor nada. Quando não faz parte fica difícil. A criança vai para a escola e a professora coloca uma leitura. Ela acha chato. O POVO - Você falou que começou tarde assim como seus contemporâneos. Você escreveu A Droga da Obediência com 41 anos, no entanto, conseguiu imprimir uma linguagem adolescente e talvez isso tenha sido a forma para cativar os leitores%u2026 O tarde foi para publicar livro. Eu sempre escrevi como jornalista. Desde cedo. E eu escrevia historinhas na Editora Abril. Profissionalmente. Me mandavam escrever. Historinha de 40 linhas. E ganhava um extra. Jornalista adora fazer freelancer. Tinha dezenas de histórias publicadas. O livro eu fui mais tarde. Mas essa não é uma linguagem jovem. É a linguagem. Qual é a linguagem jovem? De quando? De qual região? Se eu usasse a gíria da época, a gíria muda com o movimento das nuvens. E qual a gíria do Ceará é a mesma de Porto Alegre. E de que mês? De que ano? Outro dia uma pessoa um texto escrito para criança e usou a palavra %u201Cirado%u201D. Eu quando escrevi A Marca de Uma Lágrima, a Isabel estava apaixonada pelo Cristiano. E eu queria usar uma palavra mais jovem. E qual palavra? Não tinha. Na minha época era gamada. Isso tem 40 anos. Algumas gírias viram palavra normal. Como chato, paquerar%u2026 mas é raro. Tem que tomar cuidado. Meus livros são escritos todos em norma culta, por isso são eternos. Não tem nada em linguagem jovem. Não tem um palavrão. Não tem uma gíria. O POVO - Falo de uma linguagem simples%u2026 Você tem que usar a norma culta, mas não pode abusar. Não pode ser um período longo ou palavras raras. Pode usar um %u201Cpra%u201D ou coisa assim. Mas não tem palavrão nos meus livros. E meus livros são usados. Volta e meia tem problema com o pai. Por que a verdade para alguns pais é estranha... Aquela atitude da Isabel de estar sonhando estar nos braços do Cristiano%u2026 é uma coisa que qualquer menina sonha. E como qualquer menina sonha eu pus nos meus livros%u2026 tem pai que fica %u201Cnossa, meu deus, minha filha inocente%u201D. Tem pai que diz que eu sou pornográfico por falar a verdade. Se você olhar com cuidado quando os meninos tão sozinhos pensando, eles agem assim. No início de A Droga do A mor, a Magri, uma personagem de um grupo, todos os meninos gostam dela e ela não sabe escolher. Ela está em um hotel e tem um breakfast. Ela fica pensando nos meninos. E no prato tem quatro bananinhas. E ela pensa em qual deles. É um símbolo fálico sim. E eu preciso por. Meu leitor nessa idade pensa em sexo, mas não faz. Ele sonha e tal. Fica desesperado. Diz que adora fulano, mas não tem coragem. Ela não chegou no cara e ele nem sabe. Então, as coisas são assim. O POVO - O que você está achando do Brasil hoje? Tenho 74 anos e vou fazer 75 anos. Eu nasci na segunda guerra mundial. Vivi na Ditadura de Getúlio Vargas. O cara que punha na cadeia Monteiro Lobato e Graciliano Ramos. Entrei no jornalismo e no teatro. E tinha a censura. Onde tinha um censor na boca da máquina com lápis vermelho. Eu pensava no que ia passar. E quando foi embora a ditadura eu já não era tão jovem. Eu tinha 20 quando começou e 41 quando foi embora. Meus melhores anos de juventude foram sob Ditadura. Desde 1985, temos uma tentativa demontar uma democracia. É difícil. É difícil construir uma democracia. Quando eu entrei na escola só havia vaga no Brasil para 30% das crianças brasileiras. Hoje tem vagas para todas. A escola é excelente? No meu tempo também não era. Não era mesmo. A gente tá caminhando. A gente sonha que de repente vai ficar maravilhoso, mas não vai. Nossa história é muito ruim. Muito ruim. De ser invadido. Só ditadura. Só vivemos ditadura. 308 anos de ditadura colonial. Mais 80 anos de ditadura imperial absolutista e escravista. Depois, uma república velha exclusivista, onde era proibido o acesso a terra por qualquer pessoa que não fosse rico. Depois uma ditadura de Getúlio Vargas, depois ditadura militar. A gente tá tentando. Estamos tentando. Muita coisa de hoje é herança da ditadura militar. Foro privilegiado, aposentadoria para alguns grandes e para outros nada. Temos que varrer esse lixo todo. Estamos tentando. O Brasil está caminhando. Entramos em uma crise grande agora? Sim. Mas vamos sair dela. Claro. Eu acredito no Brasil, Cinthia. O POVO - O senhor acredita? O que eu posso fazer? Acreditar no Afeganistão? Já imaginou ser Afegã, ser Síria? Hoje, ser da Síria. A Síria foi o centro do mundo há dez mil anos. Aquela região era o crescente fértil. Ali o trigo e a cevada foram domesticados. Nasceu a escrita. Nós nascemos lá. E hoje não existe mais. São ruínas destruídas. Calma, calminha. Não imigra daqui. O teu filho vai ser feliz aqui. Pergunta do leitor. Kamile Girão Como é o seu processo de produção e como as ideias surgem? 99% é trabalho e 1% inspiração. Aprendi no jornalismo que não existe inspiração. Quando você chega na redação é trabalho. Inspire-se. Vire-se. E trabalhe. Clara que começa e joga fora. Inúmeras ideias não vão para a frente. Não é coisa que cai do céu. Nada cai do céu. Tudo é trabalho. Você vê os pintores com quadro lindo e sabe que ele fez 300 esboços do quadro. Fez, jogou fora. Não pegou a tela e %u201Cgutiguti%u201D. Hoje tem computador, mas naquele tempo não tinha.

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