Julia Roberts enfrenta dilema moral em filme sobre assédio
Protagonista de "Depois da Caçada", novo filme de Luca Guadagnino, Julia Roberts conta sobre a construção de uma personagem de integridade questionável.
18:21 | Out. 22, 2025
"Hm… não? Acho que eu preciso de um dia de folga”, respondeu Julia Roberts em tom descontraído quando foi perguntada se sua personagem, uma mulher de moral ambígua, representaria uma “mudança nas histórias contadas sobre mulheres hoje”. Como estrela central de uma trama que ironiza justamente essa discussão, uma pergunta dessa soa mesmo como algo que ela já ouviu repetidas vezes.
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Dirigido por Lucas Guadagnino, cineasta italiano autor de obras marcantes em Hollywood como “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), "Rivais" (2023) e "Suspiria" (2018), o filme avança numa áurea de ameaça silenciosa que o autor nunca tinha feito parecido. “Nem tudo é para deixar você confortável”, responde Alma a uma aluna que recorreu a ela para pedir ajuda e acabou recebendo ainda mais desconfiança.
Com quase 2h30m de duração, o filme gira em torno de um dilema moral quando Alma (Roberts) vê um amigo de longa data, Hank (Andrew Garfield), ser acusado de assédio sexual por uma de suas alunas mais queridas (interpretada por Ayo Edebiri). Embora tenha como plano de fundo o ambiente hostil das universidades, Luca constrói a tensão para que fuja desse microcosmo e possa se encaixar em qualquer embate de poder entres homens e mulheres.
Julia Roberts
“Fico meio irritada com isso porque não sei bem o que significa”, continuou Roberts em coletiva de imprensa internacional que contou com presença do O POVO. “É engraçado, porque as pessoas falam muito sobre a evolução das mulheres no cinema. Ninguém nunca fala sobre a evolução — ou involução — dos homens”, completou.
Não poderia haver uma resposta mais honesta diante do propósito áspero do filme: com forte influência no seu ambiente de trabalho, Alma toma atitudes difíceis quando se vê aprisionada a uma armadilha: acreditar na palavra da aluna ou dar voto de confiança no amigo que é capaz de jurar inocência?
Enquanto isso, os homens da história não fogem de seus arquétipos: Hank é aquele galanteador que esconde agressividade por detrás de uma máscara ingênua, e Frederick (Michael Stuhlbarg) é uma espécie de “marido decorativo” que empurra a conversa quando é preciso.
A rumo que o roteiro de Nora Garrett dá para esse confronto sobre machismo, misoginia e hierarquia em ambientes corporativos, pode não agradar em nada o público politicamente progressista que vai aos cinemas esperando ver um “filme de resposta” com motivações utópicas. No entanto, basta um olhar sarcástico para perceber que nada disso transforma a narrativa em algo condenatório.
Depois da Caçada: o roteiro
Duelando gerações muito diferentes na resolução de conflitos, a trama continua debatendo classe, gênero e raça do seu próprio jeito, engasgado. Nós vivemos num século meio engasgado, muitas vezes raso quando vai discutir coisas sérias como se estivesse no conforto de um ambiente virtual. Luca e Nora percebem que, do lado de fora, no mundo quase nunca há conforto.
É justamente por essa camada espinhosa que a interpretação de Julia Roberts é tão hipnotizante, já cotada até para uma vaga nas premiações americanas de 2026. Sua personagem trava uma notável batalha interna para esconder a dúvida no olhar sem perder sua pose de liderança inabalável. Afinal, como uma mulher em posição de poder, ela precisa defender as mulheres, correto?
Para dar esse tom de suspense, esbarrando ali no thriller investigativo, a imagem do filme é quase sempre escura, fria e cheia de sombras. Há uma cena que Hank está totalmente a contraluz num momento de revelia e mal vemos o seu rosto que ele também quer esconder. Outro recurso que o diretor usa em grande estilo aqui são os enquadramentos frontais, com o ator encarando a própria câmera no centro do quadro para nos fazer mergulhar naquele duelo.
Enquanto os homens se blindam nas carapuças patriarcais de si, Alma está sempre tomada por uma aflição que move a história para um lugar estranho e de má digestão. Em qualquer lugar que esteja, na proteção do escritório, na vulnerabilidade da rua ou no conforto de casa, ela parece cada vez mais longe da certeza.
"Depois da Caçada” estreou em agosto no 82º Festival de Veneza e segue em cartaz nos cinemas brasileiros.