Lira Neto narra bastidores da criação da UFC em livro distribuído gratuitamente

Biografia da Universidade Federal do Ceará narra a obstinação e também as intrigas e escândalos que envolveram a fundação. Mostra também a convergência de intelectuais, artistas, políticos, militantes e cientistas que impulsionam a trajetória da UFC

19:46 | Out. 07, 2025

Por: Érico Firmo
FACHADA Reitoria UFC, na Avenida da Univerdade (foto: Thais Mesquita/ O POVO 22.08.2022)

“Não vai durar seis meses”, era o comentário que se fazia sobre a ideia de criar uma universidade no Ceará. Aos 70 anos, a instituição é personagem de uma obra peculiar. Foi lançada nesta terça-feira, 5, "UFC: biografia de uma universidade", escrita por um dos autores referência do gênero no País, Lira Neto.

A publicação foi financiada por patrocínios. Por isso, não houve custo para a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a distribuição é gratuita.

Lançada pela Editora UFC, a obra não é burocrática, institucional, tampouco panegírica. “Como toda boa biografia, você tem de levantar as zonas de luz e de sombra da biografada ou do biografado. E dos personagens que estão dentro dessa história”, explica o escritor.

Biografia da UFC reúne polêmicas históricas e conflitos

Estão presentes as polêmicas, os conflitos, os interesses. A narrativa é rica em bastidores, intrigas e pressões. O livro é fortemente político, pois uma instituição pública de ensino superior é fundada por jogos de poder, que se seguem ao longo da trajetória.

É apresentada a complexidade de figuras como Antônio Martins Filho, que domina a primeira parte da trajetória. Ex-ajudante de tipógrafo, ele teve banquinha de jogo do bicho e foi comerciante e jornalista antes de se tornar o líder do movimento que levou à fundação da UFC. Contraiu empréstimo pessoal para levar comitiva à Europa para conhecer instituições de ensino. Já reitor, chegou a abdicar dos vencimentos e ainda pagou das próprias economias os pequenos adiantamentos à equipe provisória, quando mal havia orçamento disponível.

A desenvoltura no trânsito pelos gabinetes federais do Rio de Janeiro foi determinante para tornar viável o empreendimento. Ao mesmo tempo, ele não hesitou em usar as relações para acionar o Exército, que ocupou a universidade e retirou estudantes que protestavam. Isso antes ainda da ditadura militar.

Martins Filho comemorou o golpe de 1964 e foi cotado para ministro da Educação em algumas ocasiões. O escolhido para o cargo, Flávio Suplicy de Lacerda, acreditava ter sido indicado pelo colega. Devido a convênios com os Estados Unidos e às viagens oficiais, o dirigente cearense chegou a ser apelidado “reitor Coca-Cola”.

Biografia da UFC não busca heróis ou vilões

“Eu não costumo usar a biografia como um detector de vilão e de mocinho. Todo mundo tem seus vários lados. Todo mundo assume papéis e personas diferentes ao longo da sua trajetória. E no caso do Martins Filho era isso”, define Lira Neto.

São apresentadas, assim, as realizações do primeiro reitor, mas também os escândalos, o questionamento ao diploma e a acusação de transformar a instituição em “cabide de emprego” para parentes e aliados. Em certo momento, eram 11 familiares empregados.

“A história da UFC sempre foi contada com um viés autocongratulatório, como se fosse uma história quase unipessoal. Eu tentei mostrar que a universidade é uma obra coletiva. Não foi um homem só que fez a UFC. É claro que eu dou todo o protagonismo pro Martins Filho. Ele foi o grande articulador, um grande propagandista também da causa. Mas precisou contar com a ajuda de muita gente”, acrescenta.

Nesse trabalho de conjunto, emergem alguns dos mais importantes intelectuais do Ceará, como Liberal de Castro, Valton Miranda, Diatahy Bezerra de Menezes, André Haguette, Maria da Guia e Gilmar de Carvalho. O pintor Antônio Bandeira foi o guia em Paris durante a missão de prospecção. A criação do Museu de Arte da Universidade do Ceará (Mauc) envolveu artistas como Sérvulo Esmeraldo, Chico da Silva e Heloísa Juaçaba. No Curso de Arte Dramática e no Teatro Universitário, participaram B. de Paiva e Emiliano Queiroz. O Centro Acadêmico de Arquitetura, única entidade estudantil a seguir ativa, mesmo informalmente, durante a ditadura, foi importante pólo de resistência e serviu de ponto de convergência para Fausto Nilo, Rodger Rogério, Ednardo, Belchior e outros que viriam a formar o Pessoal do Ceará.

Os bastidores políticos da UFC

Mas a UFC quase esbarrou em interesses da política local. Na fase inicial, o governador Faustino de Albuquerque não se empenhou pela celeridade da tramitação — especula-se, com intenção de esperar o filho se tornar professor universitário e vir a ser o reitor. A proposta de criação foi retirada de pauta na Assembleia Legislativa do Ceará. No Senado Federal, o projeto para incorporação da Faculdade de Direito foi rejeitado, com relatório contrário do senador ipuense Plínio Pompeu de Saboia Magalhães.

Mesmo assim o movimento prosseguiu, ganhou força e gradualmente se tornou suprapartidário, com adesão do sucessor de Faustino no governo, Raul Barbosa, e até do arcebispo dom Lustosa. Quando a implantação parecia próxima, a tramitação voltou a ser retardada porque o deputado federal João Otávio Lobo, do PSD, recebeu promessa de Getúlio Vargas de ser escolhido reitor. Os aliados preferiram ganhar tempo para que o mandato dele chegasse ao fim. Getúlio morreu antes disso.

O governador seguinte, Paulo Sarasate, era da UDN e articulou contra Lobo e a favor de Martins Filho. Quando este afirmou que só aceitaria a indicação se fosse o mais votado para a lista tríplice, Sarasate se admirou da ingenuidade.

Também houve obstáculos com as unidades preexistentes que deram origem à UFC. A Faculdade de Direito, mais antiga instituição de ensino superior do Estado, liderou o processo, apesar de resistências internas. A Faculdade de Farmácia e Odontologia, que surgiu privada, foi estadualizada e depois federalizada, via na incorporação uma saída aos constantes percalços financeiros. Porém, a Escola de Agronomia não demonstrava empolgação em fazer parte da universidade, pois dispunha de verbas do Ministério da Agricultura e não achava vantagem passar para a esfera do Ministério da Educação para “dividir a miséria”, como definia o professor Prisco Bezerra. Houve resistência igualmente na recém-criada Faculdade de Medicina, mantida por entidade privada e sem interesse em abdicar da autonomia.

Por outro lado, contribuiu o conhecido traço emigrante do cearense. Conterrâneos em posições-chave ajudaram a abrir portas. Desde os primeiros passos, quando José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), havia assumido provisoriamente a Presidência da República. O presidente do Conselho Nacional de Educação era Cesário de Andrade. Na época da ida à Europa, o embaixador Hildebrando Accioly contribuiu. E Humberto Alencar, chefe de gabinete de Antônio Balbino de Carvalho, ministro da Educação e Saúde Pública, foi peça fundamental nos passos definitivos.

A inicialmente Universidade do Ceará — recebeu o “Federal” na reforma de 1965 — rapidamente se consolidou e se expandiu. Lira explica isso pelo cenário da década de 1950, produto do nacional-desenvolvimentismo da era Vargas, com bancos de desenvolvimento, e que prossegue com a Sudene.

“Naquele momento, o Brasil estava crescendo e Fortaleza estava crescendo. Portanto, carecia de uma mão de obra cada vez mais qualificada. A sociedade tinha ficado mais complexa, havia novos negócios de novas naturezas. Emergia pela primeira vez na nossa história uma classe média urbana. Isso está no DNA da UFC, criada no semiárido, não só para pensar o semiárido, mas também para desenvolver esse semiárido”, analisa o autor.

O papel dos estudantes na história da UFC

A publicação salienta ainda o protagonismo dos estudantes. Desde as primeiras greves de alunos, contra o calendário de provas, até o uso de autofalantes na Campanha da Legalidade, em defesa da posse de João Goulart.

São mostradas ainda as sombras do período da ditadura. Um estudante chegou a levar dois tiros na entrada da Residência Universitária, durante a repressão a uma assembleia. Outro foi baleado na coxa.

Havia o temor de infiltrados. Professores da Comunicação Social divulgaram nota de repúdio à contratação do professor Teobaldo Landim, que depois apareceria em relatório da Polícia como informante. Diante da reação docente, o então reitor Fernando Leite baixou portaria para demitir todo o departamento. Só recuou depois que Martins Filho e outros colegas intercederam para evitar o escândalo.

O clima de medo era tal que não deixava imune nem o professor conservador Denizard Macedo, que havia sido expoente do Integralismo e que pediu para o caixão ser coberto com a bandeira do Sigma — símbolo do movimento — e com a do Império. Ele contava que andava sempre com a escova de dentes, para o caso de ser levado preso.

Ao final do regime, em 1986, estudantes invadiram a sala da Assessoria de Segurança e Informação (ASI), órgão de espionagem vinculado ao SNI, e levaram as fichas de professores, alunos e funcionários. Havia descrições de posições ideológicas e também da vida privada, desde orientação sexual até nomes e endereços de supostas amantes. No momento em que um aluno se matriculava, a ficha era aberta. Não escapou nem o então governador Gonzaga Mota, ex-presidente do centro acadêmico de Economia e depois professor do curso, nem o ex-reitor Paulo Elpídio.

Trinta policiais federais foram ao Diretório Central dos Estudantes (DCE), prenderam três alunos que lá estavam e levaram as fichas que encontraram. Houve uma manifestação pela soltura dos presos, com milhares de pessoas. Na época na primeira campanha para governador, pelo PMDB e com apoio de grande parte da esquerda, Tasso Jereissati participou do movimento.

A UFC no centro dos interesses do Estado

Pelo peso para o Estado, a UFC sempre foi objeto de interesse dos políticos. Quando Martins Filho foi impedido de buscar o quinto mandato de reitor, seguiu-se intensa disputa, que envolvia Senado, Câmara dos Deputados e Prefeitura de Fortaleza. O reitor trabalhou para Prisco Bezerra ser o sucessor, mas o escolhido foi Fernando Leite, com influência do então senador Paulo Sarasate. O filho de Prisco, Roberto Cláudio, viria a ser reitor. E o neto, também Roberto Cláudio, prefeito de Fortaleza. Outro neto, chamado Prisco, é suplente de senador e empresário do ramo de educação.

Fernando Leite foi reitor no auge da ditadura militar e também se notabilizou por medidas folclóricas, como proibição de minissaias e veto a palavrões pelos funcionários no ambiente de trabalho.

Em 1983, José Anchieta Esmeraldo Barreto foi o último reitor escolhido sem consulta à comunidade universitária. Uma indicação com as bênçãos de líderes do PDS, sucessor da Arena, como Adauto Bezerra, Lúcio Alcântara e Paulo Lustosa. O sucessor, Hélio Leite, foi definido a partir de lista tríplice formada na primeira votação a reunir o conjunto de professores, servidores e estudantes. Foi também o primeiro egresso do movimento estudantil, com passagem pelo DCE, a assumir o cargo.

Mas as consultas não são eleições, e as escolhas até hoje passam por listas tríplices formadas pelo Conselho Universitário e remetidas ao presidente da República, a quem cabe a decisão. Em dois momentos, a situação levou a grandes crises. Em 1991, o colegiado não seguiu a ordem estabelecida na consulta à comunidade e definiu como primeiro colocado Antônio de Albuquerque, que havia ficado em terceiro. Indicado reitor pelo à época presidente Fernando Collor, tomou posse sob grande manifestação que impediu discursos e encerrou a cerimônia em três minutos. Após ameaçar partir para o confronto físico, o reitor foi embora fugindo em um buggy amarelo.

Em 2019, Cândido Albuquerque foi o terceiro na votação e escolhido pelo então presidente Jair Bolsonaro. A posse foi em Brasília, mas, na colação de grau seguinte, houve intensos protestos na Concha Acústica. O reitor não conseguiu discursar, a cerimônia foi encerrada após cinco minutos e foi feito cordão de isolamento para Cândido conseguir sair. Veio a pandemia e só voltou a haver colação de grau presencial em 2023, já com o atual reitor, Custódio Almeida — o primeiro da lista tríplice dentre a qual o antecessor foi escolhido.

UFC 70 anos: Os dramas e as amenidades

O livro conta ainda momentos dramáticos, como o estupro e assassinato de uma estudante no vestibular de 2000, e a morte de Ícaro Moreira, dez meses após assumir a reitoria.

São registrados ainda episódios deliciosos, como a visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. A filósofa se surpreendeu com a frescura do vento de Fortaleza. O cicerone foi o cronista do O POVO Milton Dias, que era chefe de gabinete da reitoria. Ele conduziu o casal por périplos menos cerimoniosos. Levou-os à zona de meretrício no Arraial Moura Brasil. Eles gostaram tanto que voltaram desacompanhados no dia seguinte, o que gerou preocupações quanto à segurança — de quem não sabia a que ponto a cidade turvaria.

Outro incidente relatado por Lira Neto foi quando, acidentalmente ou não, no prédio em frente à Igreja dos Remédios, deixaram abertas as gaiolas do laboratório de biologia onde ficavam ratos usados em experimentos com alucinógenos. Os animais, desorientados, correram pelo campus, ganharam as ruas, até dentro da igreja e das casas.

O autor já escreveu a trajetória de personalidades como Getúlio Vargas, José de Alencar, Padre Cícero, Edson Queiroz, Castello Branco e Maysa. Mas com nenhum dos biografados teve tanta familiaridade quanto com a universidade pela qual é formado em Comunicação Social. “Não conheci pessoalmente nenhum dos meus biografados anteriores. No caso da UFC, eu sou uma cria da casa”, afirma Lira Neto.

Ainda assim, a pesquisa para o livro trouxe muitas descobertas. “Coisas que eu não tinha a mínima ideia. Dos jogos de poder, das articulações políticas, das puxadas de tapete, da guerra que é a existência da universidade, principalmente no momento da repressão. Minha intimidade com a UFC atingiu um outro patamar, vamos dizer assim”. Proximidade da qual o leitor também compartilha.

UFC: Biografia de uma universidade

  • De Lira Neto
  • Editora UFC, 2025
  • 482 páginas
  • Distribuição gratuita