A Grande Família 50 anos: o humor da classe média brasileira

"A Grande Família", que estreou pela primeira vez na televisão brasileira há 50 anos, também ganhou um remake e se tornou uma das séries mais populares da TV Globo

10:00 | Abr. 09, 2022

A primeira versão da série 'A Grande Família' foi lançada há 50 anos (foto: Reprodução/ TV GLobo)

Uma das séries mais populares da Rede Globo começou como um fracasso. Quando “A Grande Família” estreou na programação da emissora há cinco décadas, a recepção foi baixa. O motivo era evidente: a ideia era que o conteúdo fosse uma adaptação da produção estadunidense “All In The Family”.

O problema era que a realidade dos Estados Unidos daquela época, em que sua população enfrentava o desemprego e a queda do alto padrão de consumo, nada tinha a ver com o dia a dia dos brasileiros, que viviam em meio à ditadura militar (1964 - 1985) e passavam por um período conturbado na economia e na política.

Logo os responsáveis pelo programa notaram que havia a necessidade de mudar o ponto de vista. Com o fim da primeira temporada, que teve somente seis episódios, os criadores levaram a realidade do Brasil para as telas. Na história, Lineu (Jorge Dória) é casado com Dona Nenê (Eloísa Mafalda), uma dona de casa.

O casal tem três filhos: Júnior (Osmar Prado), um estudante com ideais revolucionários; Tuco (Luiz Armando Queiroz), um jovem hippie que tenta aproveitar sua liberdade ao máximo; e Bebel (Djenane Machado e, posteriormente, Maria Cristina Nunes), uma mulher mimada que se casa com Agostinho (Paulo Araújo), o garçom de um motel.

Como o início do enredo foi criticado, a continuação passou por algumas adaptações. A família, por exemplo, foi morar em um conjunto habitacional no subúrbio, porque não tinha tantas condições financeiras.

Durante a trama, assuntos relevantes para a época - e ainda hoje - foram abordados de uma maneira humorística. O desemprego, a falta de perspectivas de futuro para a juventude, o alto custo de vida e os problemas familiares estavam sempre presentes.

“A Grande Família” na ditadura

As mudanças de uma temporada para a outra garantiram o sucesso de audiência. Entretanto, havia um obstáculo: a primeira versão de “A Grande Família” era exibida durante a ditadura militar. Por meio do humor, os criadores tentavam driblar suas críticas, que destacavam o cotidiano de uma família em decadência por causa da crise econômica. Mas isso nem sempre era possível.

Na dissertação “A Grande Família: intelectuais de esquerda, Rede Globo e censura durante a ditadura militar (1973 - 1975)”, a autora e professora Roberta Alves Silva cita momentos em que textos precisaram ser cortados do roteiro. Os pareceres eram realizados por um órgão do extinto estado de Guanabara para depois seguirem para o âmbito federal. De acordo com a pesquisadora, apesar de certas restrições, o conteúdo atendia a alguns ideais da ditadura.

Essa ampla aceitação dos censores aconteceu mesmo que Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (1936 - 1974), fosse um dos criadores da produção. Ele, que era um dos diretores da Rede Globo, atuou contra a repressão militar. Na década de 1960, ajudou a fundar o Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Posteriormente, a instituição foi colocada na ilegalidade, mas seus membros continuaram lutando contra a ditadura.

E o diretor tinha um objetivo em mente: o de retratar o cotidiano brasileiro a partir das perspectivas de um homem trabalhador de classe média. A questão é que, apesar das críticas, os laços da família tinha bastante destaque. E, entre tantos problemas que os familiares enfrentavam, todos permaneciam juntos. Reforçava, portanto, o ideal da união que muitos dos militares defendiam.

A canção-tema de “A Grande Família”, composta por Tom e Dito - uma das duplas de grande sucesso no samba na década de 1960 - também mostrava essa harmonia familiar em meio ao caos: “Esta família é muito unida/ E também muito ouriçada/ Brigam por qualquer razão/ Mas acabam pedindo perdão/ Pirraça pai, pirraça mãe, pirraça filha/ Eu também sou da família, também quero pirraçar/ Catuca pai, catuca mãe, catuca filha/ Eu também sou da família, também quero catucar”.

Nova adaptação

A primeira versão de “A Grande Família” teve uma boa audiência, mas o remake do início dos anos 2000 virou uma grande referência na cultura brasileira. Criada por Cláudio Paiva, a série foi protagonizada por nomes como Marco Nanini, Marieta Severo, Rogério Cardoso, Lúcio Mauro Filho, Guta Stresser, André Beltrão e Pedro Cardoso. O sucesso foi tão grande que o conteúdo ficou no ar durante 13 anos.

Algumas adaptações foram feitas para dialogar com o contexto da época. A família Silva, que mora na zona norte do Rio de Janeiro e pertence à classe média baixa, precisa lutar para sobreviver. Os nomes dos personagens são os mesmos, mas eles passaram por algumas mudanças.

Nenê é uma dona de casa dedicada e responsável por apartar as confusões familiares. Ela é mulher de Lineu, o patriarca, honestíssimo, politicamente correto, que tenta sustentar a família com o pouco de dinheiro que recebe no seu emprego público como fiscal veterinário. Eles têm dois filhos, também com personalidades marcantes. Bebel, a filha mais velha, é mimada e tem um estilo funkeira. Ela é casada com Agostinho, que trabalha em um motel e vive às custas dos sogros. Já Tuco é o irmão mais novo e preguiçoso.

Dentro do núcleo da família, ainda há Seu Floriano, que dorme no sofá da casa, porque o lugar não tem espaço para todo mundo. Outros nomes aparecem de forma recorrente. É o caso de Beiçola, um advogado e viúvo que se tornou dono da pastelaria da região. Ele se apaixona por dona Nenê, apesar de ela ser casada.

A segunda versão de “A Grande Família”, entretanto, tinha sido idealizada somente para ser um especial. Mas a repercussão foi tão grande que a série permaneceu no ar por mais de uma década e exibiu um total de 485 episódios na TV Globo.

Na época, a audiência chegava a competir com a novela das 21 horas e o Jornal Nacional, dois programas de maior público da emissora. Por causa disso, tornou-se a série humorística mais assistida da televisão brasileira. Agora, o conteúdo está disponível na plataforma de streaming Globoplay.

A fama de Agostinho Carrara

Anos depois do fim de “A Grande Família”, um personagem continua a ser popular entre as pessoas, principalmente, na internet. Agostinho Carrara, que era conhecido por ser um “malandro”, era um dos protagonistas mais carismáticos. Sempre que o assunto envolvia dinheiro, fazia de tudo para se dar bem - mesmo que isso indicasse que outras pessoas ficariam para trás. Era ainda o responsável por colocar os familiares em várias confusões.

O personagem, porém, precisou aprender a agir dessa maneira para conseguir crescer em seu contexto social. Ele viveu apenas com a mãe, porque seu pai lhe abandonou quando era criança. Por isso, teve que agir conforme o meio para sobreviver.

vivendo cada dia mais como o Agostinho Carrara. pic.twitter.com/OTM4avGCLr

— gangsta da roça (@omxrginxl) April 4, 2022

Em suas cenas, popularizou várias frases engraçadas, que até hoje são utilizadas como memes. “É hora de esquecer os erros do passado e começar a planejar os erros do futuro”; “Como é que pode no mesmo dia o cara ser assaltado, sequestrado, assassinado e ainda acabar a gasolina do carro?”; e “O dinheiro é um traidor. Sempre que saímos juntos, volto sempre sozinho pra casa” são recorrentes nas redes sociais.

Além disso, a moda de Agostinho Carrara, que misturava várias estampas diferentes, também costuma ser citada na internet, principalmente, por causa de suas semelhanças com as roupas de grifes atuais.

agostinho carrara / harry styles pic.twitter.com/9eBx5V2me7

— carol. (@louistavery) March 15, 2021

Harry Styles, por exemplo, sempre é comparado por seus fãs com o personagem. O cantor britânico que recentemente lançou “As It Was” é um dos rostos da Gucci. “Boatos de que o Agostinho Carrara é uma grande inspiração pro Harry Styles”, escreveu um fã na internet.

A popularidade do personagem nas redes sociais é tão grande que muitos perfis são dedicados a ele. Um dos mais famosos era o “Acervo Agostinho Carrara”, que contava com várias cenas do protagonista. A página saiu do ar no início do ano, mas isso não passou despercebido pelos internautas.

“O perfil ‘Acervo Agostinho Carrara’ virou isso aqui. Estou completamente desolado e sem chão. Todo dia queimam uma biblioteca de Alexandria”, brincou o humorista Pedro Certezas em publicação no Twitter, que teve mais de 23 mil curtidas.

O perfil “Acervo Agostinho Carrara” virou isso aqui.

Estou completamente desolado e sem chão.

Todo dia queimam uma biblioteca de Alexandria… pic.twitter.com/8zT2uGfjL9

— Pedro Certezas (@pedrocertezas) January 7, 2022

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