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"O rei está morto": Luís 14 e seus rituais fúnebres

Residência dos soberanos da França, o Palácio de Versalhes dedica toda uma exposição às exéquias do "Rei Sol", em 1715, reunindo relíquias, detalhes curiosos e costumes macabros histórias de luto real e alívio popular

12:18 | 02/11/2015
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No início do verão de 1715, o monarca francês Luís 14 queixou-se de dores na perna. Em meados de agosto, a gangrena se manifestou, e em 1º de setembro ele estava morto. Durante 72 de seus 77 anos de vida, ele fora rei da França. Ele deixou a vida assim como nascera: como um grande evento público. Mas a morte de Luís 14 não provocou apenas luto no país.

"Somente durante dois dos últimos 30 anos de seu reinado, a França não esteve em guerra", conta Gérard Sabatier. Como um dos curadores da exposição Le Roi est mort! (O rei está morto), atualmente no Palácio de Versalhes, ele pesquisou durante três anos a história das exéquias do soberano. "Os franceses não eram apenas forçados a ir à guerra, mas também tinham que pagar por ela. Quando o rei morreu, alastrou-se uma espécie de alívio."

Lever, coucher
Apesar da doença, o "Rei Sol" manteve seus rituais quotidianos até dois dias antes da morte. Não era tão difícil assim: afinal, ele conduzia a maior parte dos assuntos reais a partir da cama. Naturalmente não dormia num quarto comum, e tampouco era normal tudo o que se desenrolava no aposento.

A alcova de Luís 14 situava-se no centro do Palácio de Versalhes. Assim, da cama, ele podia observar o magnífico saguão de entrada dourado. E não era acaso a localização da residência, refletindo o trajeto solar, do leste até o oeste.

Cada dia real começava com o lever du roi o despertar do rei. Na meia hora que levava para ser vestido, ele já ia recebendo as primeiras visitas, segundo a ordem de status. Primeiro entrava o irmão de Luís, em seguida o filho, por último apresentavam-se os dignitários dos escalões mais baixos.

A alcova ficava lotada de gente. Desde cedo da manhã, o regente portava peruca, sua espada pendia do cinto, com as luvas dispostas por cima. O dia real terminava com o coucher du roi: o rei ia para a cama.

Corpo, coração, vísceras
Um dia após a morte de Luís 14, seu cadáver foi aberto, dividido em três partes corpo, coração e vísceras e embalsamado pelos médicos. Em seguida, ele foi depositado num sarcófago de chumbo, por sua vez envolvido por um caixão de carvalho.

Filipe, o Belo foi o primeiro monarca a ser dividido em três partes, após sua morte, em 1314. A motivação para tal era totalmente pragmática: em vez de apenas um, havia, assim, três locais em que os restos mortais do regente eram preservados e onde o povo podia lhe prestar a última reverência. Em tempos mais turbulentos, em contrapartida, esses despojos reais foram profanados e os objetos de valor, saqueados.

O duplo esquife de Luís 14 foi velado por oito dias em Versalhes. Contrariando o costume, não foi produzida nenhuma efígie sua. Segundo uma tradição romana retomada pelos ingleses, costumava-se confeccionar um boneco de palha representando o rei morto. Munida dos moldes em cera do rosto e das mãos do defunto, a figura era trajada e colocada sentada na cama, onde "recebia" as visitas fúnebres.

O bisneto como sucessor
Tais efígies tinham um papel essencial nas procissões de sepultamento da França. Elas eram aboletadas na frente da carruagem fúnebre real que atravessava Paris, permitindo à população ao longo das ruas saudar uma última vez o seu rei.

O pai de Luís 14, Luís 13, foi quem deu fim a essa tradição, que considerava pagã. A partir de então, os pranteadores tiveram que se contentar em prestar homenagem aos restos mortais no túmulo real.

Luís 14 dedicou bastante tempo à geração de sua descendência: com a rainha Maria Teresa ele teve seis filhos, dois dos quais, homens. Nem todos os seus vizinhos na Europa tinham a mesma sorte: para os Bourbons da Espanha, por exemplo, foi um problema manter a linha hereditária.

Apesar da prole numerosa, entretanto, a casa real francesa também encontrou dificuldades com a sucessão do "Rei Sol". O primogênito Luís, conhecido como "Grand Dauphin", morreu em 1711, aos 49 anos. Um ano mais tarde foi a vez de seu irmão, também batizado Luís.

O único herdeiro cogitável ainda vivo, então, era o neto do "Dauphin" é claro, também chamado Luís. Mas quando seu bisavô morreu em 1715, o futuro Luís 15 contava apenas cinco anos de idade, sendo, portanto, ainda jovem demais para prestar homenagens póstumas ao nobre ancestral ou participar do enterro.

Código de vestimenta estrito
"A morte do rei, enquanto representante e instituição, era um momento-chave para a percepção pública da monarquia", aponta o site da mostra O rei está morto, que celebra o tricentenário da morte do monarca e estará aberta até 21 de fevereiro de 2016 no Palácio de Versalhes, nas cercanias de Paris.

O cadáver de Luís 14 foi trajado de lilás, em vez do negro usual, numa mensagem tão paradoxal quanto explícita: mesmo que os reis morram, o rei é imortal.

Quem vestia negro eram os convidados que, um a um, iam aspergir água sobre a cabeça do morto. Certas dependências de Versalhes foram cobertas de preto, assim como as carruagens do cortejo. A cor valia também para os criados e os cavalos.

Um protocolo estrito ditava quem podia portar que tipo de traje de luto: quanto mais elevado o status, mais longa era a cauda que o pranteador podia arrastar atrás de si. Para os mais distinguidos, essa parte da vestimenta chegava a alcançar cinco metros de comprimento.

Pompa e impropérios
Ao cair da noite de 8 de setembro de 1715, a procissão fúnebre se dirigiu do palácio até a Catedral de Saint Denis, onde são mantidos os túmulos dos reis franceses. Não se sabe por que o cortejo levou 12 horas nesse trajeto noturno. Talvez por influência da Espanha, onde se preferia realizar os funerais à noite. A escuridão certamente acentuava a dramaticidade.

Dos 2.500 integrantes do séquito, muitos eram da guarda real. A pé ou a cavalo, eles seguiam o carro funerário de três metros de altura, em cujo alto brilhava uma cruz de prata iluminada.

À frente da procissão, 400 pobres iam caminhando, vestindo mantos e capuzes pretos e portando velas. Quando começaram a atravessar as ruas parisienses, acompanhados por toques rítmicos de tambor, a multidão passou a bradar insultos e impropérios: muitos franceses estavam felizes por se verem livres daquele monarca tão longevo.

Revolução: o fim do descanso eterno
O sol começava a despontar quando o cortejo alcançou a Saint Denis. Músicos executaram uma marcha fúnebre de André Philidor. Foram depositadas sobre o esquife a capa de veludo azul de Luís 14, com cinco metros de comprimento e apliques de arminho, e a espada que pertencera a Carlos Magno. No interior do sarcófago colocaram-se um modelo da espada, as esporas e o cetro real, a fim de acentuar a autoridade do falecido.

O corpo ficou sepultado na catedral até 1793, quando foi exumado, durante a fase do Terror que sucedeu à Revolução Francesa. A placa de cobre que decorava o caixão foi retirada, derretida e transformada numa concha de molho.

O coração de Luís 14 foi para a Igreja Jesuíta da rua Saint Antoine. Durante a Revolução, saqueadores a invadiram, roubaram todo o ouro e destruíram os despojos mortais do rei. A exposição em Versalhes apresenta três corações reais fundidos em ouro.

Somente as vísceras do "Rei Sol" foram poupadas pelo furor iconoclasta dos jacobinos. Recentemente encontraram-se os recipientes que as continham, sob o chão do coro da Catedral de Notre Dame de Paris. Séculos a fio, os milhões de turistas que visitavam o edifício religioso não tinham ideia de onde estavam pisando.


Autor: John Laurenson (av)
Edição: Alexandre Schossler

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